(O Globo, 29/10/2014) Sobraram agressões, ironia e, vá lá, receituários econômico e social no segundo turno da campanha presidencial. Pelo caminho, ficou a agenda dos direitos civis. Tanto Dilma Rousseff, agora reeleita, quanto Aécio Neves preferiram, na reta final, se afastar do vespeiro das discussões sobre aborto, casamento gay, criminalização da homofobia, legalização das drogas, intolerância religiosa. Presentes no primeiro turno, em grande parte pelo esforço de candidatos nanicos — Luciana Genro e Eduardo Jorge, do lado progressista, Pastor Everaldo e Levi Fidelix, no polo conservador —, os assuntos desapareceram de debates, horário eleitoral e entrevistas no pós-5 de outubro.
A omissão foi conveniente tanto à petista quanto ao tucano. Afinal, grupos habituados a misturar religião e valores morais com política compunham o leque de alianças dos dois candidatos. Foi para não contrariar bancadas e líderes católicos e evangélicos que Dilma e Aécio se alinharam numa espécie de pacto informal de silêncio em torno de antigos tabus eleitorais. Nos quatro duelos em redes de televisão, não houve sequer uma referência a direitos civis. Foi um retrocesso em relação ao primeiro turno, quando o confronto de ideias sobre o tema rendeu alguns dos melhores momentos da campanha. Para o bem e para o mal.
Dilma e Aécio se livraram do desconforto por algum tempo, mas não conseguirão fugir da agenda para sempre. A sociedade civil registrou os compromissos firmados por cada um na primeira etapa da corrida presidencial. E vai cobrar. Ninguém esqueceu que a presidente reeleita e o senador da República prometeram empenho na aprovação do Projeto de Lei 122/2006. É o texto que criminaliza a homofobia e, há anos, enfrenta resistência no Congresso Nacional.
O governo Dilma também será chamado a se posicionar sobre aborto. Ainda durante a campanha, defensoras dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres elaboraram petição on-line cobrando de parlamentares e dos ministros da Saúde e da Justiça a revisão da legislação brasileira. Hoje, a interrupção da gravidez no país só é permitida nos casos de estupro, risco à vida da gestante e feto anencéfalo. Mesmo assim, uma portaria da Saúde regulamentando e fixando valores para os procedimentos no SUS foi engavetada por pressão da bancada religiosa.
Outra polêmica à espreita é a redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos. O autor da proposta de emenda constitucional (PEC 33/2012) foi o senador Aloysio Nunes, candidato a vice na chapa tucana. Aécio Neves defendeu; Dilma e a então candidata Marina Silva (PSB) condenaram. Entidades do movimento social, entre elas a Anistia Internacional, têm se manifestado contra a medida, mais uma de viés punitivo, num país que assiste passivamente ao extermínio em massa de jovens rapazes, principalmente negros. Há cerca de 30 mil homicídios por ano e quase nenhuma iniciativa eficiente de preservação de vidas e ressocialização de menores infratores.
A agenda dos direitos civis exigirá particular atenção diante do Congresso fortemente conservador, que emergiu das urnas neste 2014. O Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) identificou crescimento nas bancadas policial (55 deputados e senadores), religiosa (52) e ruralista (257). Candidatos (e eleitos) comprometidos com avanços nos direitos civis não poderão fugir da luta.
Acesse o PDF: Debate abandonado, por Flávia Oliveira (O Globo, 29/10/2014)