(Carta Capital, 23/02/2016) Um dos pioneiros na detecção do zika no Brasil, infectologista esclarece dúvidas sobre o vírus
No início de 2015, uma misteriosa doença provocou a superlotação dos hospitais de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador. Os pacientes apresentavam quadro clínico semelhante à dengue, mas os testes davam resultado negativo e alguns sintomas fugiam do protocolo.
Difundiu-se o boato de uma virose transmitida pela água, logo batizada de Síndrome de Camaçari. Consultor de um hospital da região, o infectologista Antonio Carlos Bandeira desconfiou das conclusões apressadas. Acreditava tratar-se de um novo vírus transmitido por mosquito, dada a velocidade de propagação da moléstia.
O especialista coletou amostras e pediu apoio de um antigo parceiro de trabalho, o virologista Gúbio Soares, da Universidade Federal da Bahia. As suas suspeitas estavam corretas. Pela primeira vez, constatou-se a circulação do zika vírus no continente americano.
Milhões de brasileiros podem ter sido infectados. “Não dava tempo de notificar tudo. Registrava um caso, passavam dez”, recorda Bandeira, coordenador do Comitê de Arboviroses da Sociedade Brasileira de Infectologia. Na entrevista a seguir, ele procura esclarecer algumas das dúvidas relacionadas ao zika e suas consequências.
CartaCapital: Quando o senhor começou a desconfiar que havia um novo vírus em circulação no Brasil?
Antonio Carlos Bandeira: Percebemos um aumento muito grande de pacientes com um quadro clínico semelhante à dengue, mas alguns sintomas eram diferentes e os testes davam resultado negativo.
Os corredores dos hospitais ficaram abarrotados. A imprensa ficou em cima, logo passou a chamar de “Síndrome de Camaçari”. Difundiu-se a suspeita de alguma virose transmitida pela água. Sou consultor de um hospital da região, e fui chamado para avaliar o caso.
Não me parecia nada relacionado à água, pois os pacientes apresentavam uma exantema [erupção cutânea] parecida com a da rubéola. Pelo volume de infectados, suspeitei de algo transmitido por um vetor, por um mosquito. Como os testes para dengue não indicavam nada, pedi ajuda ao doutor Gúbio Soares, da UFBA, um parceiro de trabalho há mais de 10 anos. Separei algumas amostras e pedi para ele analisar. Começamos a investigação pelos arbovírus, isto é, vírus transmitidos por mosquitos.
CC: A identificação da nova ameaça demorou muito?
ACB: As amostras foram coletadas no dia 23 de março de 2015. Pouco depois, embarquei para Copenhagen, onde participei de um congresso internacional de infectologia, mas continuei recebendo informes. Os testes de dengue foram refeitos, e voltaram a dar resultados negativos. Das 24 amostras, três identificaram chikungunya. Era uma novidade, não sabíamos que esse vírus estava circulando por Camaçari.
De toda forma, isso não explicava o que ocorria. O doutor Gúbio continuou pesquisando e, quando retornei ao Brasil, ele me informou que sete ou oito amostras deram positivo para zika. Muito cuidadoso, ele chegou a usar duas técnicas diferentes para confirmar. Imediatamente, o Ministério da Saúde foi informado. Era o primeiro registro do zika no Brasil, na verdade, o primeiro de todo o continente americano.
CC: Quantos brasileiros podem ter sido infectados pelo zika vírus?
ACB: O Ministério da Saúde estima até 1,5 milhão de infectados. Pelo que vimos no ano passado, o número deve ser maior. Só na Bahia, pode ter havido 1 milhão de casos, ainda que as notificações tenham ficado na casa dos 60 mil.
Todas as unidades de saúde ficaram assoberbadas, com muitos pacientes relatando sintomas de zika. Não dava tempo de notificar tudo. Registrava um caso, passavam dez. Curiosamente, houve uma grande redução de casos em 2016. Talvez a maioria da população já tenha sido exposta ao vírus e ganhado certa imunidade.
CC: Quem contraiu o vírus uma vez fica imune?
ACB: É uma suspeita, embora a literatura científica não dê uma resposta. O zika foi descoberto em 1947, mas ainda é bastante desconhecido. As pesquisas produzidas sobre a doença até a entrada do vírus no Brasil não esclareceram quase nada. Mesmo esse número de 80% de infectados assintomáticos, eu tenho as minhas dúvidas.
Quando você pergunta às mulheres que geraram bebês com microcefalia, mais de 70% delas confirmam sintomas de zika durante a gestação. Se fosse uma moléstia tão oculta, a maioria das gestantes não se lembraria de nada. Sinceramente, as pesquisas anteriores são insuficientes.
Por décadas, o vírus ficou restrito a comunidades pobres da África e da Ásia. Só quando chegou às Ilhas do Pacífico, a partir de 2007, houve maior interesse em estudá-lo. Pudera, são ilhas paradisíacas, repletas de turistas europeus. As pesquisas começaram a andar, mas os estudos para valer começaram agora, depois de o zika ser detectado no Brasil.
CC: Como diferenciar os sintomas do zika daqueles da dengue?
ACB: O paciente com dengue costuma chegar ao hospital quebrado, bastante debilitado. Com zika, ele parece bem, conversa normalmente. A dengue costuma dar febre alta, de 39, 40 graus. Com zika, a febre é baixa, às vezes inexistente.
A dengue manifesta exantemas mais intensas e confluentes. A zika dá um monte de carocinhos vermelhos, parecidos com os da rubéola. Eles são pruriginosos, coçam bastante. A dengue não dá coceira nenhuma.
O diagnóstico de zika pode ser confirmado por um teste de PCR, a partir de amostra de sangue. Mas só dá positivo se o exame for feito até o quinto dia de infecção.
CC: Houve, de fato, um aumento das notificações da Síndrome de Guillain-Barré após o surto de zika?
ACB: É o que os registros das unidades de saúde indicam. No Hospital Couto Maia, de Salvador, costumávamos ter de dois a três casos por ano. Em 2015, foram quase 40. Na verdade, o Guillain-Barré relacionado ao zika é atípico.
Normalmente, essa síndrome se manifesta com perda de sensibilidade e paralisia dos membros inferiores. É raro subir pelo corpo. Nos pacientes com sintomas anteriores de zika, a paralisia começava pela face.
É um quadro reversível, mas deixa alguma sequela em, aproximadamente, 20% dos casos. Só em ocorrências gravíssimas, o Guillan-Barré acomete a musculatura respiratória e pode levar a óbito.
CC: Há consenso entre os cientistas de que o zika causa microcefalia?
ACB: Tudo aponta nessa direção. Recentemente, um estudo publicado no The New England Journal of Medicine relatou o caso de uma gestante eslovena, infectada pelo zika em Natal. Ela retornou à Europa e recorreu a um aborto. Na autópsia, os pesquisadores encontraram o zika no cérebro do feto. Há uma clara correlação do aumento dos casos de microcefalia com o surto de zika. As evidências são muito fortes.
Na verdade, falamos grosseiramente de microcefalia, mas o que vemos é uma malformação congênita e muito severa do sistema nervoso central. O desenvolvimento do cérebro fica muito comprometido. São crianças que vão nascer cegas, surdas, que dificilmente terão uma vida autônoma.
CC: É consistente a suspeita de transmissão do zika por relação sexual?
ACB: Há dois relatos nos Estados Unidos. É pouco para afirmar qualquer coisa. Essas evidências só levantam a necessidade de maior investigação. Repare: até hoje parte da comunidade científica questiona se o zika causa microcefalia, mesmo tendo centenas, talvez milhares de casos potenciais.
CC: A Fiocruz identificou o vírus ativo na saliva. Outro grupo investiga se o pernilongo Culex não está envolvido na transmissão do zika.
ACB: Por conta da velocidade de disseminação, temos levantado a possibilidade de o pernilongo estar envolvido. O vírus chegou ao Brasil e, em menos de um ano, está batendo na porta dos Estados Unidos.
A dengue, por exemplo, surgiu na América Central, mas demorava meses para avançar de um país para o outro. Até chegar ao Brasil, passaram-se uns dois anos.
Agora, essa história de vírus ativo na saliva não quer dizer muita coisa. Você pode encontrar o HIV na saliva, e nem por isso há risco de contrair Aids pelo contato. Precisa comprovar que alguém pode contaminar outro.
CC: Diante de tantas dúvidas, o que recomendar às gestantes?
ACB: Para se proteger, a gestante tem de passar o repelente mesmo, do primeiro ao último dia de gestação. Não pode esquecer nenhuma área, inclusive as mãos. Vale usar meias, blusas e calças compridas.
CC: O Ministério da Saúde confirmou a morte de três adultos por zika.
ACB: Ainda não vejo razões para se preocupar com a mortalidade do zika. Foram apenas três casos relatados, e não há comprovação de que o vírus foi o responsável pela morte. Num dos casos reportados pelo governo, a vítima também tinha lúpus, que é uma doença autoimune grave. Foi o zika que a matou?
A preocupação é com as gestantes e com os pacientes que desenvolvem Guillain-Barré. Fora isso, é uma doença leve, branda. Para um adulto, é melhor ter zika do que dengue. No segundo caso, há o risco da febre hemorrágica, a mortalidade é muito maior.
*Uma versão desta entrevista foi publicada originalmente na edição 889 de CartaCapital, com o título “Fumacê na falta de informação”
Rodrigo Martins
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