(Diário de Cuiabá, 07/10/2014) Enquanto cerca de 800.000 mulheres interrompem a gravidez todos os anos, milhares de famílias aguardam nas intermináveis filas de adoção em busca da realização do sonho de ter um filho: este é o retrato do Brasil do novo milênio.
Ao criminalizar ambas as práticas, o aborto e a adoção direta, o Estado brasileiro, em um mix de ignorância e autoritarismo, gasta mais de 140 milhões de reais por ano em internações no SUS por conta de complicações médicas decorrentes de abortos clandestinos, ao mesmo tempo em que frustra casais que se dividem entre gastar milhares de reais em clínicas de fertilização humana ou em morosos e cruéis procedimentos de adoção em que há muito mais candidatos do que crianças aptas para tanto.
É cediço concluir que a construção de uma sociedade que se pretende verdadeiramente democrática não pode simplesmente “criminalizar” um desejo legítimo de não ter filhos indesejáveis, até porque a singela proibição não possui a plena efetividade de evitar a prática, como bem demonstram os assustadores números envolvidos: apenas entre 2004 e 2013, cerca de 9 milhões de mulheres interromperam a gestação no Brasil, conforme dados da Organização Pan-Americana de Saúde.
Vale ressaltar que a atual proibição penaliza, sobretudo, a mulher de baixa renda, que realiza o procedimento em condições sanitárias péssimas, colocando sua vida e sua saúde em risco. Também é oportuno consignar que há apenas quatro mulheres condenadas (e presas), no Brasil, por terem abortado, o que por si só revela o quanto resta ineficaz a tipificação penal de tal prática.
O que se faz urgente e necessário, portanto, – e sem maiores hipocrisias -, é conciliar o reconhecido direito da mulher em não ter filhos com o imperioso direito à preservação da vida do nascituro, o que jamais será alcançado com a simples criminalização da prática do aborto (a despeito de mais de 70 anos de vigência do art. 124 do CP).
Destarte, o caminho mais seguro para resolver, em definitivo, a questão do aborto em nosso país passa, necessariamente, por afastar a nefasta ingerência do Estado – com seus permanentes vícios criminalizadores de condutas -, permitindo que casais interessados em ter filhos possam, por meio de instituições e/ou organizações não governamentais, “adotar” o nascituro diretamente das mulheres dispostas a abortar, financiando todos os custos envolvidos em uma gravidez, demovendo-as, sem ineficazes ameaças de punição, deste desejo que, no íntimo, não é plenamente verdadeiro, considerando que nenhuma mulher deseja realmente encerrar a vida fetal, mas sim apenas exercer o legítimo direito de não ter filhos.
*REIS FRIEDE é desembargador federal e ex-membro do Ministério Público. Mestre e doutor em Direito pela UFRJ
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