Apelo ao pluralismo, por Flávia Piovesan e Jacqueline Pitanguy

28 de abril, 2016

(O Globo, 28/04/2016) A história da humanidade tem revelado períodos de profunda desordem, nos quais parâmetros básicos da vida social parecem ter desaparecido.

O clima de acirramento político vem afetando crianças. Em uma escola de São Paulo, no meio da aula, um aluno desenhou a presidente Dilma sendo enforcada, provocando polêmica entre os colegas — o que revela o quanto estão sendo impactadas pelo clima de ódio, vendo o diferente como um inimigo a ser exterminado, conforme a reportagem da BBC “Politização da infância? Acirramento chega ao playground e causa preocupação”, de 14 de abril de 2016.

Na sessão que votou a admissibilidade do impeachment, em 17 de abril, o deputado Bolsonaro dedicou o seu voto ao coronel Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi, reconhecido torturador da ditadura, inclusive por decisão judicial confirmada por unanimidade pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. O deputado incorreu em inaceitável apologia à tortura, fomentando o discurso do ódio e da intolerância, totalmente incompatível com o decoro parlamentar, em violação à absoluta proibição da tortura, tanto no âmbito constitucional quanto internacional.

Some-se, ainda, a violência política de ordem sexista, levando a ONU Mulheres a advertir, no dia 5 de abril, em nota pública sobre a situação política no Brasil, que “nenhuma discordância política ou protestos pode justificar a banalização da violência de gênero — prática patriarcal e misógina que invalida a dignidade humana”. O uso de qualificativos sexistas e ofensivos, envolvendo o apelo à pornografia, que tem circulado nos meios sociais contra a presidente da Republica converte o debate político em grave violação à figura da mulher que exerce o cargo público, em brutal ofensa a todas as mulheres, bem como à ordem constitucional e à ordem internacional.

No artigo “O impeachment desnudo”, publicado em “O Estado de S.Paulo” dia 18 de abril, o escritor Flávio Tavares afirmou que “foi reconfortante ver o povo sair às ruas, externar ideias e opiniões ‘sim’ ou ‘não’. Mas sem política nem políticos confiáveis se imita o fanatismo do futebol. O ódio está em todas as partes (…). E a intolerância tudo permite.”

A história da humanidade tem revelado períodos de profunda desordem, nos quais parâmetros básicos da vida social parecem ter desaparecido, semeando insegurança e favorecendo o surgimento de grandes medos coletivos. Essa insegurança constitui um terreno fértil para o crescimento da intolerância. Nesses momentos de anomia social, afloram emoções, radicalismos e certezas absolutas, que inviabilizam o diálogo e o respeito às diferenças de opinião. A intolerância com a diversidade de perspectivas se cristaliza no ódio a fomentar embates violentos. A crítica propositiva é substituída pela crítica destrutiva, e a ausência de pontes de comunicação entre diferentes posições gera estratégias de confronto e aniquilamento. O Brasil vive hoje um momento de acentuada insegurança política e econômica, com um cenário público marcado pela intolerância, pelo ódio e pela polarização.

Para a consolidação democrática — além do fortalecimento do Estado de direito e de suas instituições, da garantia da ética, da probidade, da transparência e do eficaz combate à corrupção — essencial é a prevalência dos direitos humanos, do pluralismo político, do debate desarmado, do diálogo livre, do respeito para com o outro, do dissenso pacífico e da salutar divergência. Fundamental é combater o nocivo discurso do ódio em que a palavra carrega a máxima violência do discurso a fomentar a violência multifacetada, física, política, cultural e de aniquilação do “outro”. A intolerância se alimenta de ideologias de superioridade baseadas em diferenças, sejam étnico-raciais, de gênero, idade, nacionalidade, diversidade sexual ou grupo político. É por isso que na democracia tudo se tolera, salvo a intolerância.

Para o filósofo alemão Habermas, as sociedades democráticas demandam a abertura de espaços comunicativos e a possibilidade de participação geral, por meio do reconhecimento mútuo dos indivíduos como seres autônomos, livres e iguais, membros de uma comunidade comum. O diálogo livre e destemido, a exposição de argumentos e a crítica pública em um ambiente pluralista são imperativas condições ao regime democrático, sempre fundado no respeito ao outro, seja quem for.

Em tempos de ódio, emerge o desafio maior de romper com a cultura da violência e da intolerância, que tanto está a comprometer a formação das presentes e futuras gerações. O pluralismo, a diversidade, o respeito e os direitos humanos compõem, mais do que nunca, a própria salvaguarda do Estado Democrático de Direito.

Flávia Piovesan é procuradora do Estado de São Paulo e professora da PUC-SP e Jacqueline Pitanguy é socióloga e integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher

Por Flávia Piovesan e Jacqueline Pitanguy

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