Mesmo sem saber, você já deve ter conhecido alguma mulher que tenha feito um aborto. De acordo a Pesquisa Nacional do Aborto, pelo menos, uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez um aborto no Brasil. Isso quer dizer que 4,7 milhões de mulheres abortaram no país até o ano passado. Ainda que seja prática comum, o aborto é crime, a não ser em casos de estupro, risco de vida para a mulher e malformação do feto.
(Brasil de Fato, 05/05/2017 – Acesse o site de origem)
Nos últimos tempos, deputados federais, estaduais e vereadores conservadores têm trabalhado para criar leis que trazem penalidades maiores às mulheres que decidem fazer abortos clandestinos. Segundo o Dossiê Retrocessos em Tramitação, produzido pela ONG Casa da Mulher Trabalhadora (CAMTRA), existem pelo menos 15 projetos federais e três no estado do Rio de Janeiro com proposta de retirada de direitos sexuais reprodutivos.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Vanessa Barroso, redatora do dossiê, ressalta que o documento serve de instrumento para que a população acompanhe o que está acontecendo nas casas legislativas e consiga se posicionar. “Agora os projetos de reforma da Previdência e reforma trabalhista estão sendo tratados em regime de urgência, mas não podemos nos esquecer que os outros projetos de retiradas de direitos estão lá e podem entrar em votação a qualquer momento”, explica.
O documento serve de instrumento para que a população acompanhe o que está acontecendo nas casas legislativas e consiga se posicionar / Divulgação
Brasil de Fato: Quais são os principais retrocessos propostos pelos parlamentares brasileiros que vocês notaram ao formular o dossiê?
Vanessa Barroso: O Estatuto do Nascituro é o maior deles. Ele foi apresentado em 2007, mas teve pedido de urgência pela Frente Parlamentar Evangélica, no final do ano passado, após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter se posicionado pela descriminalização do aborto ao julgar um caso específico, que aconteceu no Baixada Fluminense. O Estatuto apresenta uma série de retrocessos e retirada de direitos que hoje são garantidos por lei, como o aborto em casos em casos de estupro, risco de vida para a mulher e malformação do feto.
O projeto ainda visa criar a “bolsa-estupro”, onde o Estado torna-se legitimador da violência sexual contra as mulheres, dando “direitos” de pai a estupradores e exigindo que paguem pensão alimentícia. E, ainda, obriga a mulher a denunciar o crime.
Foi colocado em regime de urgência no ano passado, mas ainda não foi votado?
Não, por conta do cenário de votação da reforma da Previdência e reforma trabalhista. Mas pode voltar ao plenário a qualquer momento. Além do estatuto, o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM) pediu a instalação de uma comissão especial para inserir na Constituição um dispositivo sobre a proteção da vida desde a concepção, em qualquer circunstância. A comissão especial, na realidade, seria formada para tratar sobre uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), parada desde 2013 e retomada às pressas após decisão do STF, que estende a licença maternidade em caso de nascimento prematuro à quantidade de dias que o recém-nascido passar internado. Mas esse é apenas um pretexto para modificar o conteúdo do projeto e incluir texto que considere o aborto crime em qualquer circunstância.
Além dessas propostas em âmbito federal, como estão os projetos na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj)?
Em 2017, os projetos na Alerj que ferem esses nossos direitos estão relativamente estacionados, apesar de muitos parlamentarem fluminenses estarem mexendo seus pauzinhos no Congresso Nacional. Mas nos últimos anos tivemos vários exemplos, a “CPI do aborto” é um deles. Ela pretendia exigir notificação à polícia toda vez que uma mulher fosse internada em situação de aborto, fosse espontâneo ou não. A CPI foi arquivada por conta da luta das mulheres. É muito importante para continuar a luta, entender o que está acontecendo nas casas parlamentares, para tentar frear o avanço dos retrocessos aos nossos direitos.
No Brasil hoje existem mais propostas para criminalizar a mulher e o aborto do que leis que criem condições de tratar a questão como assunto de saúde pública. Por quê?
Acreditamos que isso tem a ver com a configuração do Congresso Nacional, da Alerj e da Câmara dos Vereadores que é muito conservadora. Estamos vendo o fortalecimento das bancadas fundamentalistas, que trabalham contra direitos sexuais reprodutivos e querem colocar a mulher em um estereótipo de mãe e dona de casa que não toma as suas próprias decisões. Essa é uma forma de controlar os nossos corpos. O pouco que conquistamos ao longo da história, estão querendo nos tirar.
Mesmo que na lei seja garantido o aborto para alguns casos, na prática, muitas mulheres não conseguirem realizar, muitas vezes, por negligência do Estado…
Existe um projeto de lei da vereadora Marielle Santos (Psol), no Rio, que tenta garantir justamente que a lei funcione na prática. O projeto busca efetivar esse direito através do acolhimento e orientação às mulheres, garantindo o atendimento livre de discriminação por qualquer motivo. Nossa expectativa é que seja aprovado, apesar da Câmara do Rio ter uma configuração muito conservadora, em que vereadores querem transpor seus dogmas religiosos para a política, ignorando o Estado Laico. Há uma pressão grande do movimento feminista para que esse projeto seja aprovado. Esperamos que em breve seja colocado em pauta.
Quais os próximos passos da CAMTRA, após a formulação do dossiê?
O dossiê é um instrumento para que a população saiba o que está acontecendo nas casas legislativas e possa se organizar para se opor ao conservadorismo. Pretendemos fazer ainda um trabalho de formação política com jovens e mulheres, a partir desse material. Além disso, queremos construir um observatório de políticas públicas, para que estejamos sempre alertas. A ideia é continuar o trabalho de acompanhamento desses projetos legislativos, usando o dossiê como uma ferramenta mesmo.
Edição: Vivian Virissimo