(Brasil de Fato, 25/06/2014) Joana Barros, assessora nacional da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), nesta entrevista, ao Brasil de Fato, reforça que os megaeventos esportivos servem a um processo de transformação urbana que aprofunda as desigualdades, inclusive a de gênero.
“São as mulheres as que mais arcam com os custos das remoções”, afirma ela, que é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).
Ao debater a chamada crise urbana, Joana faz uma análise crítica ao atual modelo de desenvolvimento.
Brasil de Fato – O que significa dizer que as metrópoles estão em crise?
Joana Barros – Precisamos contextualizar o que chamamos de crise urbana. Há uma percepção recente de que a vida nas cidades virou um inferno e que esta crise urbana explodiu em junho [de 2013]. Mas este é um processo antigo, que remonta pelo menos aos anos de 1970, de aumento agudo do padrão de crescimento urbano, da consolidação das grandes manchas metropolitanas e que tem relação com o perfil produtivo do país e o grau de urbanização que ele enseja e requer. É significativo o fato de que somos hoje 85% de brasileiros vivendo em cidades, mas é mais importante saber como se vive nelas. Nos últimos 15 anos houve o aprofundamento de um modelo de cidade muito excludente. As cidades brasileiras sempre foram segregadas, mas o tom e a forma dessa segregação muda justamente porque o modelo urbano está articulado ao modelo de produção do país. Então, o que a gente chama de crise nas cidades mostra a crise do atual modelo de desenvolvimento. E, ao contrário do que se poderia pensar, não se restringe às metrópoles.
Esse modelo de cidade e de desenvolvimento interfere muito na vida das mulheres. Poderia falar sobre isso?
As mulheres sempre tiveram um lugar nas cidades de muita invisibilidade e sempre foram sujeitas à violência, seja na rua seja em casa. Se a gente olha uma coisa muito pequenina que é o desenho das casas, você vai perceber que os lugares em que as mulheres ficaram por muito tempo, como a cozinha e área de serviço, são mal ventilados, sem visão de rua, encarcerados em si. Isso já é sintomático. E hoje as mulheres ainda estão expostas o tempo inteiro a um sem número de violências. As cidades possibilitam mais e mais isso com seus lugares mal iluminados, sem segurança e com espaços socialmente marcados como masculinos. Esta violência toda que parece marcar e estruturar a história das mulheres tem a ver com a percepção de que elas são objetos: seus corpos, suas vidas, sua própria existência como sujeito está em disputa, não é dado como no caso dos homens, que são por princípio senhores de seus corpos e de suas vidas. E é claro que isto está na cidade, nos espaços de circulação, nas casas, na organização do trabalho, na maneira como legitimamos ou não a fala e a ação política das mulheres.
Os megaeventos esportivos aprofundam esse quadro?
É importante dizer que a Copa e as Olimpíadas não podem ser pensadas sozinhas, como processos que se encerram com o final dos jogos e da atividade. Os eventos acabam, mas o processo de transformação econômica e urbana no qual estão inseridos não. No nosso entender a Copa – não só ela como todo e qualquer megaevento esportivo desse porte – faz parte de uma reorganização produtiva, econômica e territorial no país, e atinge de forma diferente as cidades-sede justamente porque se articula ao processo mais global de transformação e desenvolvimento econômico regional, estadual ou local. Especificamente no caso das mulheres há formas de violência que recrudescem, como o aprofundamento da exploração sexual. É só atentar para as cidades onde essa questão e a do tráfico de mulheres e crianças já eram graves como Fortaleza, mas também em outras como Salvador, Recife, Rio de Janeiro. A Copa aprofunda este problema. Aqui podemos e devemos abrir o debate sobre o papel que a imagem das mulheres brasileiras cumpre na atração de investimentos para o país.
Outro elemento importante neste contexto das obras de transformação urbana vinculadas à Copa: são as mulheres as que mais arcam com os custos das remoções. São elas que cuidam do cotidiano, que se desorganiza de forma intensa e violenta com a retirada de sua moradia. Com a remoção não só se perde o valor monetário da casa, como também o acesso à escola e o acompanhamento médico no posto de saúde, as redes de sociabilidade que a ajudam no dia a dia com os filhos, as casas de amigos, a relação com o lugar, além da possibilidade de bicos e trabalhos extras que melhoram renda familiar. Essa desestruturação das redes de sociabilidade e de pertencimento que as remoções efetivam tem um impacto imenso na vida das mulheres: impacto afetivo, impacto econômico, impacto no tempo, impacto no trabalho.
Poderia diferenciar “exploração sexual” e “trabalho como profissional do sexo”?
Existe todo um debate em torno da legalização da prostituição. Grosso modo, uma parte do movimento feminista se contrapõe a essa pauta dizendo que a prostituição coloca e reitera as mulheres e aqueles que usam assim o seu corpo como ganho de vida em um lugar de exploração. E este lugar reitera violências históricas e marca que as mulheres são um corpo a ser usado. Por outro lado, as prostitutas e profissionais do sexo em geral vêm dizendo o seguinte: ‘nós somos profissionais e devemos ter direitos’. Ressaltam também que parte dos avanços que as mulheres tiveram não os atinge no que diz respeito à defesa em situações de violência. A Lei Maria da Penha, por exemplo, se volta a um tipo de violência contra as mulheres que é na relação com o parceiro ou com alguém do âmbito doméstico, não em uma relação de trabalho. Além disso, lembram que há uma subnotificação da violência contra esses grupos: os assassinatos de prostitutas, travestis, transgêneros e transexuais, muitas vezes, são notificados como homicídio e ponto. De fato existe um conjunto de violações que é de difícil apreensão. E há uma dificuldade em colocar todos os envolvidos na mesma mesa, no mesmo diapasão de conversa.
Para além das diferentes posições, o que concretamente tem acontecido com quem trabalha no setor?
No Rio, na região do Porto Maravilha, que está no marco de transformação econômica, aconteceu o básico: as prostitutas e os travestis foram expulsos dos lugares de trabalho, que são as áreas de “requalificação” urbana. Os processos de mudanças urbanas estão muito aderidos à lógica da “higienização” e, portanto, os “marginais da cidade” –os meninos de rua, os usuários de drogas, os catadores de material reciclado, os moradores de ocupações, os profissionais do sexo, os ambulantes, todo esse universo que sobrevive da rua e na rua – não são o perfil deste “novo” lugar que está sendo construído. Não só o Rio, mas todas as cidades grandes e médias do país estão sendo “limpas”, o que quer dizer rigorosamente que estes grupos estão sendo expulsos direta e indiretamente. Este processo responde a questões que dizem respeito ao projeto político e urbano que estrutura esta transformação: “O que eu quero para esse centro urbano? Quem eu quero que viva ali?”. Há atualmente uma intolerância absoluta aos pobres. Enquanto isso, no Centro do Rio, 80% dos imóveis são propriedades da União, e mesmo assim não se constitui uma política habitacional e urbana minimamente descente e republicana, nem digo democrática, para estes espaços, e menos ainda para as faixas de renda entre zero e três salários mínimos. É importante que se diga que parte desta faixa de população é chefiada por mulheres.
Mas as intervenções na cidade por parte do Estado sempre foram revindicadas pela sociedade civil. Quais princípios os governos deveriam seguir?
Sim, sempre foram e isso é um ganho. Depois de anos de ditadura, os movimentos sociais e sindicais foram às ruas pedindo democratização e políticas públicas. Isso a gente não pode esquecer. Entretanto, a constituição deste arcabouço de políticas públicas democráticas e participativas deu-se num contexto de desmonte e de reforma do Estado, de reorganização da economia (que conhecemos grosso modo pelo nome de globalização), de profunda mudança no cenário político e das representações políticas. Ou seja, se construímos políticas públicas e democratizamos o país, vimos também ao longo desses mais de 25 anos um processo radical de privatização da vida. As políticas públicas que construímos foram se desconstruindo por dentro, por assim dizer, ao longo dos anos de 1990 e 2000. É o que fez com que parte das nossas bandeiras, lutas e conquistas começassem a girar em falso. Houve uma mudança no perfil de atuação do Estado, mas isso não significa que ele tenha deixado de ser o grande braço indutor da economia, como quer a ideologia liberal sempre a postos. Mas esta incidência estatal na economia mudou de cara: agora, por exemplo, há mecanismos como as PPPs [Parcerias Público-Privadas]. O Estado segue sendo o grande investidor, aquele que banca efetivamente o desenvolvimento econômico do país através de recursos para “salvar os bancos”, por meio do BNDES, pelas isenções fiscais ou pela regulação e desregulação da legislação de proteção social e trabalhista.
Soma-se a isto o fato de que os investimentos “urbanos” não passam mais pelos mecanismos de participação e debate democrático sobre as cidades que construímos a partir de 88 [promulgação da Constituição]. Nas 12 cidades-sede da Copa e em outros pólos urbanos, os recursos governamentais movimentados não passam pelo Ministério das Cidades, passam apenas pelo PAC [Programa de Aceleração do Crescimento]; não passam pelos Conselhos Municipais de Habitação ou pelos Conselhos Estaduais e o Nacional das Cidades. Com isso, os investimentos não estão sujeitos ao controle público. Há uma coisa que eu acho importante dizer: temos uma tradição antiga no Brasil em ver as cidades só como vitrine dos problemas. No entanto, este modelo de desenvolvimento adotado precisa de uma cidade caótica. As cidades são, ao mesmo tempo, reflexo e motor de capitalismo no Brasil.
Precisa da compra de mais e mais carros, por exemplo?
Precisa de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) zero para produzir mais carros e de cidades com engarrafamentos monstruosos. E para isso é preciso mais minério. E água privatizada. Tudo tem uma interligação. As cidades são o motor dessa crise, porque ‘se produz mais cidade’ para se produzir uma sociedade industrial, petrolífera, que explore intensamente os recursos naturais. Ao mesmo tempo, as cidades são também o espelho desse modelo de desenvolvimento econômico, que é insustentável e vem dando muitos sinais de que a gente precisa repensar a vida urbana e também a própria sociedade brasileira. As mulheres sentem isto na pele, no cotidiano, sendo importante pensar e agir relacionando esse debate à questão de gênero.
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