De que maneiras você, mulher magra, já me oprimiu, por Vana Medeiros

09 de junho, 2016

(Revista AzMina, 09/06/2016) De que modo você já me machucou, já me discriminou, já me tratou como menos mulher que você? Você já pensou nisso?

Outro dia, estava eu na mesa do bar, aquele recinto em que geralmente estamos desarmados e descontraídos, quando veio a bomba: “Nossa, mas ele foi ficar com aquela gorda”? Depois de passar uns minutos me recuperando, dando uma olhada em volta para ver se tinha câmera escondida, percebi que, sim, minha amiga queria dizer isso mesmo que falou: não existem motivos para se ficar com a menina gorda. Porque, afinal, ela é gorda. Aí fiquei eu aqui pensando se ela sabia que estava falando com uma mulher gorda e uma que bem provavelmente já ficou com muito mais gente do que ela nessa vida. E acho que não, ela não sabia. Ela nem imagina que a gorda tem uma vida sexual ativa, e, muitas vezes, mais para hiperativa. Lembrei de todas as vezes em que a atitude mais gordofóbica do meu dia veio do meu lado, da minha amiga magra.

Por isso, esse post é pras amigas mesmo. Não só para aquelas “amigas”, com as aspas, que sabem muito bem o que estão fazendo, mas gostam de ser gordofóbicas para tentar aplacar sua insegurança atirando-a em cima da gorda. Mas também para as amigas sem aspas, as de verdades, aquelas que acham que estão sendo amigas da gorda e só estão reforçando todo o preconceito estrutural que ela passou durante toda a sua vida, mas agora com a intimidade e a cumplicidade necessárias para tornar a agressão mais tóxica e potencialmente devastadora. Vamos, então, nos lembrar de quantas vezes você já me oprimiu.

Amiga, vamos falar de gordofobia? Já ouviu o termo? É a repulsa, a discriminação, o preconceito contra pessoas gordas. Mulheres gordas sofrem gordofobia. Homens gordos sofrem gordofobia. Não com a mesma intensidade, por uma série de fatores que não cabe aqui enumerar, mas sofrem. A gordofobia abrange praticamente todas as classes sociais, as etnias, os grupos religiosos. E ela está presente inclusive entre nós, que já somos tão oprimidas, as mulheres. E você, minha amiga magra, também é minha opressora.

Seria de se pensar que, oprimidas dia e noite nessa sociedade machista em que vivemos, nós mulheres seríamos mais empáticas com outras mulheres que passam por coisas que não necessariamente vivemos. Sim, esse seria o ideal. Não, não é assim que acontece.

Nós, mulheres gordas, somos oprimidas diariamente por pessoas de todos os gêneros e identidades sexuais.  E, como só apontar o dedo não vale de muita coisa na desconstrução alheia, estou aqui para tentar explicar para você, minha companheira nessa nossa vivência feminina diária, de que maneiras você, mulher magra, já me oprimiu durante minha vida. Quem sabe você reavalia o peso de suas ações na vida de outras mulheres gordas que, como eu, precisam levantar da cama todos os dias para enfrentar o mundo em que vivemos.

Para começar, você me oprimiu quando disse que também já sofreu gordofobia. Você está 10 quilos acima do que seu médico disse que seria seu “peso ideal” (como se isso existisse) e acha que, por ter sido chamada de gorda uma vez por um ex-namorado, ou por se olhar no espelho a cada dez minutos querendo morrer por causa daquelas duas dobrinhas do lado da barriga, você sofreu gordofobia. Não. O que você sofre se chama pressão estética. E todas as pessoas neste planeta sofrem disso, já que vivemos em uma sociedade capitalista que se alimenta da miséria alheia, e gosta de nos dizer constantemente que somos insuficientes, psicológica, emocional e esteticamente, mas que, olha só, que coisa!, tem um remedinho próprio pra isso, é só você comprar aqui e dividir em 10 vezes. Gordofobia pode ser (e normalmente é) um fator estressor e um agravante de distúrbios psicológicos, mas quando falamos de gordofobia não estamos falando de individualidades e experiências mentais, mas de opressão estrutural. Ou seja, estamos falando de toda uma sociedade construída para não incluir gordos. Resumindo, eu amo ser gorda. O que eu odeio é como a sociedade me trata por isso.

Você me oprimiu também quando me deu dicas sobre alimentação e exercícios sem que eu pedisse por isso. Aliás, no momento em que você deduziu que, se eu sou gorda, quer dizer que eu quero emagrecer, você me oprimiu por isso.

Nunca fui em uma academia, um grupo de alimentação saudável, um ambiente dito fitness sem que, no momento em que eu abrisse a boca, as pessoas a minha volta deduzissem que eu estou lá porque quero emagrecer e não porque eu, olhem só, me alimento de maneira saudável e faço exercícios. Não, não é a mesma coisa.

Você me oprimiu quando, para descrever mulheres magras, usou expressões como “aquela menina ali tem um corpaço”, “ela tem um corpo legal”, “eu sou gordinha mas já tive um corpo maravilhoso”, etc, etc. Eu gostaria de informar, a quem interessar possa, que eu e meu corpo tivemos uma conversa ontem à noite e decidimos que ele é um corpo muito legal, ele é maravilhoso, e ele é um corpaço. Ele me leva pra passear e pra viajar sempre que pode, ele aguenta doses interessantes de álcool e outras coisinhas mais sem reclamar muito e ele é um tesão pra quem eu e ele decidirmos juntos que vale a pena. Estou aqui torcendo bastante pra que você e o seu corpo tenham uma boa conversa dessas também e, depois que vocês fizerem as pazes, para que você veja que ele é legal, maravilhoso, um corpaço também.

Você me oprimiu quando foi minha amiga a vida inteira e, assim que eu virei as costas, riu das piadas gordofóbicas do seu namorado porque, obviamente, ele é homem e homens fazem piadas com gordas o tempo todo. Você também me oprimiu quando ficou revoltadíssima porque seu namorado ou namorada te largou por aquela gorda. Você me oprimiu quando agiu como se fosse superior à gorda da turma, ou quando disse na minha frente coisas como “ele saiu com a amiga dele, mas não tem problema, eu não tenho ciúmes, ela é gorda”. Você me oprimiu quando, com uma ponta de invejinha na voz, me disse: “Nossa, mas o seu marido gosta de você mesmo assim, gorda?” (Situação real e recorrente) Você me oprimiu quando me tratou como sub-mulher – como se eu não tivesse as mesmas vivências diárias, sociais, psicológicas e sexuais que você – porque eu sou gorda. (Por favor, se você tiver que reparar em um comportamento tóxico, repare neste aqui. Nada é mais definidor de identidades para a garota – adolescente, jovem adulta – gorda do que ser sistematicamente tratada como uma sub-mulher.)

Você também me oprimiu quando eu emagreci e você me elogiou por isso. Você não quis saber quantas refeições eu pulei, quantos degraus eu desci rumo ao transtorno alimentar, quantas vezes me machuquei por fazer mais exercícios do que meu corpo aguentava, você não quis saber se eu estava saudável. Você, aliás, esconde a sua gordofobia de você mesma repetindo o mantra do “só estou preocupada com a sua saúde”. Eu não sou sua terapeuta, mas vou fazer esse papel, afinal eu só estou preocupada com a sua saúde (mental). Essa frase é só uma camuflagem que você usa para ser preconceituosa sem admitir para si mesma que é isso que está fazendo. Se você estivesse preocupada com a saúde de alguém, e não com a estética, você nunca assumiria que gordas são feias e doentes; magras são bonitas e saudáveis. É essa suposição que leva muitas meninas no mundo todo a uma vida de compulsões e problemas psicológicos. E, o pior, elas estavam completamente saudáveis antes de começarem a jornada insana do emagrecimento.

Você me oprimiu quando associou magreza a sucesso profissional, e gordura a preguiça e incompetência. Nem você nem ninguém é bem-sucedida por ser magra, é saudável por ser magra, é bonita por ser magra. Se você quiser ser bem-sucedida, saudável e/ou bonita, vai ter que correr atrás por outros meios. Por enquanto, e enquanto você acreditar que essas coisas são sinônimos, você é só magra mesmo.

E, por fim, você me oprimiu quando não pensou na minha luta; quando esqueceu, assim meio sem querer, que o mundo não foi feito pra mim, ele foi feito para você. Você me oprimiu quando se recusou firmemente a reconhecer e a abrir mão dos seus privilégios como mulher magra, quando fez pouco caso do meu sofrimento, quando não entendeu que você é uma parte gigantesca deste sistema que oprime a mulher gorda, porque vocês são minhas amigas, minhas irmãs, minhas colegas de trabalho, minhas namoradas, minhas esposas, minhas mães e minhas filhas. Somos ambas mulheres, e deveríamos nos compadecer umas das outras, nos olhar como modelo de luta e de força.

E hoje, depois de uma vivência gordofóbica diária de décadas, tem dias em que eu acordo e só consigo olhar para você como minha opressora.

Porque faz parte de ser uma mulher gorda passar por uma situação de gordofobia por dia, se você estiver tendo um dia bom. Senão mais. E faz parte de ser uma mulher gorda que essa discriminação venha – de maneira direta, fria, cruel – da sua melhor amiga.

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