‘Deus habita o meu corpo da forma que eu sou’, diz primeira mulher trans a se tornar reverenda de igreja cristã na América Latina

23 de janeiro, 2020

Neste domingo, Alexya Salvador será ordenada na Igreja da Comunidade Metropolitana, em São Paulo, onde já atua como pastora desde 2017

(Celina/O Globo, 23/01/2020 – acesse no site de origem)

Alexya Salvador é uma mulher cristã. Alexya Salvador é uma mulher trans. E, neste domingo, Alexya Salvador será ordenada reverenda da Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), em São Paulo. E, de acordo com a própria, ela será a primeira mulher transgênero a se tornar reverenda de uma igreja cristã da América Latina.

Natural de Mairiporã, na Grande São Paulo, ela foi criada em uma família católica e permaneceu no catolicismo até os 30 anos. Ela ainda vivia como um homem gay, e mesmo vivenciando o conflito da sua própria identidade com aquilo que a religião católica pregava, na igreja se sentia segura, uma vez que na escola a violência era constante. Ativa na comunidade cristã, Alexya chegou a entrar para o seminário e pretendia se tornar padre.

Sentindo que não se enquadrava, acabou desistindo do curso e abandonando a Igreja Católica quando conheceu seu futuro marido, Roberto, em 2009. Prestes a fazer sua transição de gênero, ela achou que ali acabaria sua relação com a fé cristã.

— Entendi que ali não era mais o meu lugar. Eu estava para fazer a minha transição de gênero, porque até então eu achava que eu era um homossexual. Se enquanto gay já era tão difícil se manter dentro da igreja, imagina depois da transição. Então resolvi romper de vez— conta.

No final daquele ano, porém, retomou a relação com a religião quando buscava uma igreja que realizasse seu casamento com Roberto e encontrou a ICM. A igreja, criada há 50 anos nos Estados Unidos e hoje com atuação em mais de 100 países, segue uma estrutura teológica que prevê o acolhimento de pessoas LGBTs.

De acordo com informações da ICM nos EUA, atualmente entre 15 e 30 pessoas trans ou queer atuam como pastores e pastoras na denominação. A informação, porém, só se refere aos que informam voluntariamente que são transgênero. Nem todas as pessoas trans que participam da igreja desejam se identificar dessa forma.

— A ICM foi uma das primeiras, se não a primeira, organização cristã a ordenar e promover pessoas trans a posições de liderança. Nós temos uma longa história e o compromisso de entender o gênero para além do binarismo, além de afirmar as jornadas de gênero das pessoas, uma vez que entendemos que essas jornadas também são espirituais — disse a reverenda Kharma Amos, da ICM dos EUA.

Além da atuação na igreja, Alexya também é professora de língua portuguesa da rede estadual de ensino há 16 anos e vice-presidente da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (Abrafh). Ao formar sua família, a pastora também foi pioneira, se tornando a primeira mulher trans a adotar uma criança no Brasil, em 2015. Hoje, ela tem três filhos adotivos: Gabriel, de 14 anos, Ana Maria, de 13, e Dayse, de 8. O menino tem necessidades especiais e as duas são meninas transgênero, conta Alexya.

“Eu penso que Deus é um ser transgênero, porque Jesus para mim, é um grande mosaico. Ele não tem forma. Jesus também é mulher, homem, também é branco, Deus é negro, índio, gordo, magro.”
ALEXYA SALVADOR
Pastora

Em conversa com CELINA, Alexya falou sobre como se tornou pastora e o que a sua cerimônia de ordenação como reverenda no próximo domingo representa para pessoas trans, sobre como a igreja pode ser um espaço seguro para pessoas LGBT e sobre sua tese teológica de que Jesus também fez uma transição de gênero. Leia abaixo a entrevista na íntegra.

Como começou a sua relação com a religião? Você foi criada em uma família religiosa?

Eu sou de família católica. Desde os sete anos eu mesma procurei o catecismo. Eu fui católica até os meus 30 anos, ao ponto de ter ido ao seminário estudar para me tornar padre. Cresci apanhando muito na escola, na década de 80 e 90. A igreja era o único lugar em que eu não apanhava. Para mim, a igreja era um refúgio. A religião era um lugar muito seguro. Cresço sendo uma pessoa bem ativa na igreja, fui catequista, trabalhei na crisma e fui ministra também.

No meio da formação [do seminário],  acabei desistindo, pelo fato de eu sentir que não me enquadrava, me sentia pecadora, tinha aquele complexo de que eu não me encaixava. Quando conheci meu marido, em 2009, parei de ir à igreja porque entendia que ali não era meu lugar. Eu estava para fazer a minha transição de gênero, porque até então eu achava que eu era um homossexual. Se enquanto gay já é tão difícil se manter dentro da igreja, imagina depois da transição. Então resolvi romper de vez e, naquele momento, achei que nunca mais ia encontrar um lugar saudável.

E quando entrou para a religião evangélica?

Na internet, quando fui buscar com o meu marido se havia alguma igreja que poderia fazer o nosso casamento, encontrei a Igreja da Comunidade Metropolitana, a ICM. Eu marquei uma visita e desde então encontrei meu caminho, tanto é que é na igreja que faço minha transição de gênero.

Como foi fazer a sua transição de gênero dentro da igreja? Você foi acolhida?

Fui acolhida. Ao passo que na Igreja Católica eu ouvia que eu ia para o inferno, que não era amada por Deus, que não era obra de Deus. Na ICM comecei a ouvir o discurso contrário. Ouvi que Deus me amava do jeito que eu era, que eu não era um erro de Deus ou da natureza, que eu era uma pessoa dotada de direitos e deveres e que podia sim, ser quem eu quisesse. Lá, eu fui conhecer a chamada teologia queer, onde se desconstrói esses textos históricos na Bíblia que supostamente condenam a comunidade LGBTI+. Lá, depois de dois anos e meio, fiz a transição de gênero de uma maneira muito tranquila e saudável. Lá encontrei suporte para entender que eu poderia sim fazer a transição de gênero e adequar aquilo que eu sentia aquilo que eu queria vir a ser.

“Ser a primeira reverenda trans no país que mais mata pessoas trans e travestis é uma vitória e sinaliza a desconstrução desse patriarcado machista e misógino que se tornou o cristianismo de forma geral.”
ALEXYA SALVADOR
Pastora

Quando você fez a transição?

Concluí a transição em 3 de outubro de 2011. Eu levantei da cama e virei para o Roberto, meu marido, e disse ‘a partir de hoje o Alexander não existe mais. É Alexya.’ Tinha um detalhe nisso tudo que é importante falar: nós éramos um casal gay. Como eu ia falar para o meu marido, que é gay, que eu ia transicionar para uma mulher? Eu tinha medo de perder o meu marido e perder o amor do meu pai. A minha mãe sempre me deu todo o apoio. O meu marido, quando contei, disse que não iria me abandonar. Geralmente, nos casais gays, quando alguém se transiciona, a outra pessoa acaba abandonando. Meu marido falou ‘Onde que eu vou colocar o amor que sinto por você? Eu vou ficar do seu lado’. E estamos juntos até hoje.

Você se tornou pastora da ICM depois da transição?

Quando cheguei na ICM, no final de 2009, comecei a participar ativamente da igreja em São Paulo. Eu cantava nos cultos e comecei a exercer o ministério, da mesma forma que fazia na Igreja Católica. A comunidade, percebendo a minha dedicação, me indicou para ser ordenada diaconisa. Fui ordenada em agosto de 2011. Os anos foram passando e, em 2015, comecei a fazer a faculdade de Teologia. Também comecei a fazer o curso de teologia da fraternidade da igreja, que é um online com professores do mundo inteiro e disciplinas próprias da ICM, como sexualidade, identidade de gênero, teologia queer. Fiz os dois cursos simultaneamente. Na Páscoa de 2017, fui instalada pastora auxiliar da igreja, me tornando a primeira pastora trans do Brasil.

E como foi o processo para se tornar reverenda?

No ano passado, fiz minha tese teológica para concluir o protocolo para ser ordenada clériga e me tornar reverenda. Na minha tese, falo de Deus transgênero, passei por uma banca online e fui aprovada. Aí dei início ao processo da ordenação como clériga. Agora no dia 26 de janeiro vou ser ordenada a primeira clériga trans da América Latina, me tornando reverenda.

“As igrejas, por lógica, deveriam ser inclusivas. É redundante até. Mas nesse momento da história, a gente tem que se posicionar de maneira política e dizer que as famílias, independentemente da sua composição, tem que ser acolhidas nas suas igrejas.”
ALEXYA SALVADOR
Pastora

Como funcionam essas hierarquias na ICM?

Na ICM qualquer pessoa pode se tornar um pastor leigo ou uma pastora leiga. Pastor e pastora na ICM, são as lideranças na comunidade e a comunidade tem que eleger. É diferente das igrejas tradicionais. Nós não temos salários. Os pastores são pessoas que se dedicam para conduzir a comunidade. Em termos de hierarquia, nossa igreja tem o reverendo ou reverenda, depois o bispo ou bispa e o cargo máximo, de moderador ou moderadora. Somos a única igreja do mundo que tem uma mulher no comando. Agora, que eu concluí minha formação teológica, deixo de ser leiga e passo a fazer parte do clero da denominação.

Você será primeira reverenda trans desta igreja?

Na denominação da ICM, temos reverendas que são mulheres trans. Quem vai me ordenar, a pedido meu, é uma pessoa trans. Está vindo um bispo que é um homem trans, que vai fazer o ato litúrgico comigo, que é o Ines-Paul Baumann, que atua nos Estados Unidos. Para ter uma pessoa trans, pastor ou pastora, reverendo ou reverenda, tem que ser de uma igreja inclusiva, porque nas igrejas tradicionais nenhuma vai ter. Existem outras igrejas inclusivas, mas que não têm um protagonismo trans como na ICM. A gente tem a certeza de que não há pastora ou reverenda trans, mesmo nas igrejas com quem a gente tem diálogo e conversa. Por isso que eu sei que serei a primeira reverenda trans da América Latina.

E o que isso significa para você? Qual é a importância de você subir nessa hierarquia da igreja, sendo uma mulher trans?

Para mim, significa muito e não é a toa que escolhi o Mês da Visibilidade Trans no Brasil para isso acontecer. Entendo que a minha ordenação clerical aponta para nós uma nova possibilidade no Cristianismo. Eu gosto de dizer que a ICM não tem a pretensão de ser uma nova igreja. É apenas um capítulo da história do Cristianismo.

A minha ordenação sinaliza para a minha comunidade que nós, pessoas trans, podemos estar a frente de uma igreja, que podemos ser clero, que o Evangelho de Jesus é para todas as pessoas. Ser a primeira reverenda trans no país que mais mata pessoas trans e travestis é uma vitória e sinaliza a desconstrução desse patriarcado machista e misógino que se tornou o cristianismo de forma geral. A gente sabe que as mulheres ainda são muito silenciadas dentro das igrejas, especialmente na Igreja Católica.

Eu, que vim da Igreja Católica, achei que nunca mais ia poder viver isso. por ser uma pessoa trans. Me tornar reverenda sinaliza para mim e para as minhas duas filhas trans que nós podemos estar em todos os lugares. Estou muito feliz com isso.

Alexya é mãe de três filhos adotivos: Gabriel, de 14 anos, Ana Maria, de 13, e Dayse, de 8 Foto: Arquivo Pessoal
Alexya é mãe de três filhos adotivos: Gabriel, de 14 anos, Ana Maria, de 13, e Dayse, de 8 Foto: Arquivo Pessoal

Há espaço para famílias e pessoas LGBTs nas igrejas?

Na nossa igreja há espaço. Algumas pessoas do movimento LGBT me criticam por ser cristã e por ser pastora evangélica, dizem que sofro da Síndrome de Estocolmo. Eu até entendo que muitos LGTBs deixaram as igrejas tradicionais depois de terem sido muito machucados psicologicamente e espiritualmente.

A ICM propõe a desconstrução desse paradigma, para mostrar que é sim possível acolher as famílias homotransafetivas. Muito se fala das famílias homoafetivas, mas pouco se fala das famílias transafetivas. Até chegar o dia que não será mais necessário dar título, porque família é família.

As igrejas, por lógica, deveriam ser inclusivas. É redundante até. Mas nesse momento da história, a gente tem que se posicionar de maneira política e dizer que as famílias, independentemente da sua composição, tem que ser acolhidas nas suas igrejas, que devem ser um espaço seguro de adoração e expressão da fé. A gente vem tentando mostrar com a nossa vida diária que é possível estar na igreja de maneira segura e saudável.

Mas no Brasil hoje prevalece uma linha mais fundamentalista da igreja evangélica…

Com certeza. Inclusive em outras igrejas ditas inclusivas. Recebo pessoas que vêm completamente desnorteadas de igrejas que se dizem inclusivas. Elas acabam sendo igrejas que reproduzem o mesmo estereótipo de fundamentalismo religioso e perpetuando aquilo que machuca.

Nesses locais, a senhora acha que é reproduzido o discurso de que a igreja ‘não condena o pecador, mas sim o pecado’?

A igreja é dominada por esse pensamento. Eu sempre escutei isso na vida. ‘Deus ama o pecador, mas abomina o pecado.’ Isso fere qualquer pessoa. Todo mundo peca. É claro que Deus abomina o pecado, mas todo e qualquer pecado. O que fica implícito nessa frase é o dito ‘pecado LGBT’, como se ser LGBT fosse um pecado. É um discurso raso, injusto e condenatório.

É possível combater isso dentro da própria igreja? Como?

Sim. Sendo igreja. Hoje eu vejo isso na minha vida. Eu combato isso nas redes. Recebo ameças de morte constantes de pessoas ditas cristãs, dizendo que sou uma vergonha para o Evangelho. Eles entendem que nós não devemos existir, que não devíamos estar dentro de uma igreja e que Deus não nos ama. Esse combate eu faço com a minha vida, dizendo ‘eu existo, a minha família existe, a Igreja da Comunidade Metropolitana existe há 50 anos’. A gente está aqui para dizer que é possível sim.

“Eu não tenho dúvida nenhuma, que Deus habita o meu corpo da forma que eu sou. Mas quando as pessoas LGBT dizem ‘nós também estamos em Deus’, as pessoas não aceitam”
ALEXYA SALVADOR
Pastora

A senhora falou que fez uma tese sobre Deus transgênero. Como é essa tese?

Dentro da minha formação teológica, trago isso como reflexão e não como verdade absoluta. Para o Cristianismo, Jesus já existia mesmo antes da encarnação em Maria. Era um ser que existia. E qual era o gênero de Jesus? Era o gênero divino. Quando Jesus assume a condição humana, ele também fez uma transição de gênero. Sai do gênero divino e assume o gênero humano. Ele também foi uma pessoa trans.

Quando falei isso a primeira vez, em uma entrevista, comecei a receber ameaças de morte, tive que mudar de telefone e endereço. A igreja se indignou comigo, igrejas fundamentalistas mandaram mensagens de ódio, dizendo que eu estava ferindo Jesus ao compará-lo com um ‘bando de gay’. E não é isso. Jesus também é uma pessoa trans. É claro que ele não foi uma pessoa trans igual a mim, no estereótipo do que hoje conhecemos, mas ele faz sim uma transição e depois volta para sua condição originária que é um espírito.

Essa reação a sua fala é parecida com a que as pessoas tiveram quando a atriz Renata Carvalho, como travesti, interpretava Jesus em uma peça…

Isso mesmo. Hoje o Cristianismo é pautado em um Jesus cisgênero, heterossexual, branco, do cabelo loiro e olho azul. Quando a gente vai dizer que Jesus é negro, as pessoas olham torto. Quando apresento um Jesus macho, homem, viril, está tudo certo. Mas quando vou falar que talvez ele seja uma pessoa negra, as pessoas torcem o bico. Se falo que Jesus era uma pessoa LGBT, acabou. A figura em torno de Jesus é esse Jesus homérico. Mas ele não é só isso.

Eu penso que Deus é um ser transgênero, porque Jesus para mim, é um grande mosaico. Ele não tem forma. Jesus também é mulher, também é homem, também é branco, Deus é negro, índio, gordo, magro. Por quê? Jesus diz que somos a imagem e semelhança de Deus.
Para mim, eu não tenho dúvida nenhuma, que Deus habita o meu corpo da forma que eu sou. Mas quando as pessoas LGBT dizem ‘nós também estamos em Deus’, as pessoas não aceitam. A Renata inclusive vai estar na minha ordenação. Vai entrar com o pão e com o vinho, justamente por tudo que ela viveu e vive, pelas ameaças de morte que sofre. Pedi que ela estivesse comigo.

Por Leda Antunes

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