Caso projeto de lei seja aprovado, Argentina se juntará aos países da América Latina que descriminalizam prática e garantem aborto seguro.
(HuffPost Brasil, 27/06/2018 – acesse no site de origem)
O Senado argentino decidiu, na noite desta terça-feira (26), a data de votação para o projeto de lei que descriminaliza o aborto e permite o procedimento até a 14ª semana: 8 de agosto. Aprovado este mês na Câmara por 129 votos a favor e 125 contra, o projeto, segundo o jornal argentino Clarín, causa grande tensão entre os senadores e a votação promete ser acirrada.
Caso aprovado, o aborto será permitido até a 14ª semana de gestação de forma legal, segura e gratuita. O procedimento só poderá ser feito acima do limite estipulado por lei se houver risco de vida para a mulher, má formação do feto “incompatível com a vida extrauterina” ou em caso de estupro.
Na América Latina, apenas o Uruguai, a Guiana Francesa, Cuba e a cidade do México tem legislação que garante o aborto legal. Com a nova postura da Argentina, à favor da decisão autônoma da mulher, isso poderá ter impacto entre os vizinhos e pressionar pelo debate nos países da região, como o Brasil.
“O Brasil está em um processo político, democrático e histórico semelhante à Argentina. Eu diria que há um enorme potencial, se não de impacto, de um reconhecimento mútuo de que esse é o tempo [que vivemos hoje] da História e de que o Brasil faz parte desse processo”, afirma Debora Diniz, antropóloga e membro do Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, de Brasília.
O clima de tensão na Argentina
O clima de tensão e a polarização no Congresso argentino é grande quando o assunto é a descriminalização do aborto. De acordo com o jornal La Nación, a senadora e ex-presidente Cristina Kirchner, que não promoveu uma iniciativa similar quando estava no poder, é a favor do projeto de lei, assim como senadores da aliança governista Mudemos e congressistas de esquerda.
Mas a oposição ao projeto é forte: conta com a vice-presidente e presidente da Casa, Gabriela Michetti, e o senador Federico Pinedo, líder da bancada governista. “Todo o interior do país é contra o aborto”, disse Michetti, recentemente, desencadeando uma série de críticas. Em seguida, ela escreveu nas redes sociais que não há nenhuma intenção de barrar o debate e prejudicar a votação no Senado.
“No hay ninguna intención de dilatar el debate sobre la ley del aborto en el Senado” en #AlmorzandoConMirtha por @eltreceoficial #Mesaza
— Gabriela Michetti (@gabimichetti) 24 de junho de 2018
O presidente Mauricio Macri não revelou sua posição até o momento, mas, segundo a imprensa argentina, tem se reunido com congressistas de ambos os lados nas últimas semanas. Já o ministro da saúde, Adolfo Rubinstein, a favor da descriminalização, foi impedido de dar uma palestra em Tandil, província de Buenos Aires, por grupos contrários ao projeto.
Em entrevista ao Clarín, em fevereiro deste ano, ele disse:
“É uma questão histórica. Os países desenvolvidos já amadureceram seus debates, têm séculos de experiência. Aqui está um debate que acabou de começar e devemos esperar pela maturação dele. É uma questão espinhosa que tem muitas arestas, legais, éticas, morais, crenças têm atrasado a discussão.”
O histórico da Argentina
Com legislação semelhante à do Brasil, na Argentina era permitido interromper a gravidez apenas em casos de estupro e risco para a vida ou a saúde da mãe. Segundo dados do sistema de saúde argentino, ocorrem cerca de 500 mil abortos clandestinos por ano e, desses, 60 mil acabam em complicações no país.
“Os números demonstram que, apesar da proibição, as mulheres continuam abortando. Quem é de classe média e vive na capital pode dar um jeito, sem correr risco de vida”, afirmou a jornalista e ativista Mariana Carbajal, em discurso no Congresso. “Mas, para as pessoas de baixo recursos ou que vivem no interior, não ter acesso a uma clinica, onde possa abortar legalmente, representa um risco de vida. Ignorar isso é ignorar a realidade”, finalizou.
Para além da onda feminista de 2015, em 2018 uma nova geração de feministas é dona do protagonismo da campanha pelo direito ao aborto ocupando as ruas de Buenos Aires. A imagem de milhares de jovens, sacudindo lenços verdes, símbolo da luta pela descriminalização do aborto, foi capa dos jornais desde março deste ano e se multiplicou pelas redes sociais.
Em discurso recente no Congresso, o presidente Mauricio Macri surpreendeu ao apoiar o início de um debate que, segundo ele, “tinha sido postergado durante os últimos 35 anos”. Mas os ministros ainda estão divididos sobre a questão. Na tarde desta terça-feira (12), o jornal La Nacion manteve em sua manchete uma reportagem que destacava os nomes dos parlamentares contra e à favor. Até a publicação desta matéria, o número se mantinha em 119 contra e 111 a favor da descriminalização.
Para além do movimento feminista recente “Ni Una A Menos” (Nenhuma a menos, em tradução para o português), a Argentina foi pioneira na legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2010, e também na aprovação de uma lei que permite aos transexuais escolher o nome e gênero que querem colocar no documento de identidade, em 2012. Esta é inspiração para o deputado Jean Wyllys (Psol-RJ), que elaborou a Lei João Nery, proposta em tramitação no Congresso Nacional que garante os mesmos direitos aos transexuais brasileiros.
A discussão sobre aborto no Brasil
Enquanto isso, no Brasil, a ministra Rosa Weber, relatora de ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, marcou para os dias 3 e 6 de agosto uma audiência pública para instruir o processo. Foi divulgada a relação de habilitados para o encontro no Supremo Tribunal Federal: serão 44 expositores, com 20 minutos cada para argumentação.
“O propósito da audiência pública é incrementar, de forma dialógica e aberta aos atores externos da sociedade, o processo de coleta de informações técnicas, e das variadas abordagens que o problema constitucional pode implicar, bem como a formação ampla do contexto argumentativo do processo, como método efetivo de discussão e de construção da resposta jurisdicional”, escreveu a ministra em despacho do dia 4 de junho.
Foram recebidos 502 e-mails entre 2 e 25 de abril, sendo 187 pedidos de habilitação como expositor na audiência, de pessoas físicas com potencial de autoridade e representatividade, de organizações não-governamentais, sociedades civis, sem finalidade lucrativa, e institutos específicos.
Na lista de selecionados estão o Ministério da Saúde, organizações da aaúde, como Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, religiosas, como a Conferência Nacional dos Bispos, de direitos humanos, como a Human Rights Watch, entidades que ajudam mulheres a interromper a gravidez, como a Women on waves, além de integrantes da Frente Parlamentar em Defesa da Vida.
Na ação discutida no STF, o Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero é autor, junto com o PSol. No processo, advogadas afirmam que a proibição é ineficaz e que o Estado brasileiro, em última instância, acaba sendo conivente com práticas semelhantes à tortura às quais as mulheres se submetem para interromper a gestação.
Hoje o aborto só é permitido no Brasil em caso de estupro, risco de vida da mulher ou feto anencéfalo. Autor da ação junto com o PSol, o instituto Anis argumenta que a proibição é ineficaz e que o Estado brasileiro, em última instância, acaba sendo conivente com práticas semelhantes à tortura às quais as mulheres se submetem para interromper a gestação.