Rebeca Mendes, primeira brasileira a começar uma batalha judicial para que sua decisão de interromper uma gravidez não desejada fosse respeitada, conta suas razões
(El País, 26/01/2018 – acesse no site de origem)
Meu nome é Rebeca Mendes, sou estudante de Direito brasileira, tenho 30 anos e dois filhos, um de nove e outro de seis anos. Vivo em São Paulo, a maior cidade da América do Sul. Já devem ter ouvido falar de mim: sou a primeira brasileira e talvez a primeira latino-americana a entrar com uma ação na instância judicial superior do meu país para que minha decisão de interromper uma gravidez não desejada fosse respeitada. Muitos questionaram minha decisão ou me criticaram sem sequer me conhecer. Por este motivo, peço sua atenção para que eu possa me apresentar.
Não sou tão diferente das milhares de brasileiras que também são mães solteiras responsáveis economicamente pelas suas famílias. Vivo em constante malabarismo para equilibrar minha rotina com as necessidades dos meus filhos. Trabalho de manhã, sirvo o almoço, levo as crianças à escola, continuo trabalhando à tarde, preparo a janta e vou à faculdade, da qual chego apenas às 23h30. Curso o quinto semestre da faculdade de Direito com uma bolsa de estudos do governo, conquistada com muito esforço. Por enquanto, trabalho como temporária até fevereiro. Não sei o que farei depois. Como se todo esse redemoinho de coisas não fosse suficiente, em 13 de novembro de 2017 eu descobri que estava grávida. Fiquei desesperada.
Muitos podem dizer que não me cuidei, mas isso não é verdade. Não sou uma mulher irresponsável. Se o sistema público de saúde tivesse me atendido a tempo, quando quis mudar meu método contraceptivo, eu não teria passado por nada disso. Essa foi a primeira vez em que o Estado falhou comigo.
A gravidez foi resultado do único encontro amoroso que tive com o pai dos meus dois filhos em três anos desde a separação. Quando disse a ele, foi o primeiro a mencionar a possibilidade do aborto. Voltei para casa chorando. Eu me dei conta de que se decidisse seguir em frente com a gravidez, não teria nenhum apoio do pai. Sem trabalho a partir de fevereiro, sabia que a primeira coisa que teria que sacrificar seriam meus estudos. Ou seja, teria que desistir do sonho de terminar a faculdade e fornecer uma vida melhor a meus dois filhos.
Todos conhecemos mulheres que estiveram na mesma situação e se submeteram a um aborto. É um procedimento comum. Busquei informações e descobri que são realizados anualmente mais de 500.000 abortos ilegais no Brasil. E que quase a metade das mulheres que passam por esse procedimento acabam nas salas de emergência dos hospitais por complicações relacionadas ao aborto inseguro. Eu não queria e nem podia ser uma delas. Tenho dois filhos para criar. Por 700 reais, poderia comprar seis comprimidos de misoprostol [a OMS o inclui na Lista Modelo de Medicamentos Essenciais para a interrupção precoce da gravidez]. Mas que garantia eu teria de que não colocaria minha vida em risco por não ter tido nenhum tipo de orientação sobre a administração do remédio? Também não tinha 5.000 reais para pagar uma das várias clínicas privadas dos bairros ricos das grandes cidades brasileiras que realizam o procedimento sem riscos.
O que você teria feito em meu lugar e nestas circunstâncias?
Entrei em contato com a organização Anis – Instituto de Bioética e decidi protocolar uma ação no Supremo Tribunal Federal para realizar o procedimento de maneira segura, como acontece em vários países do mundo. Conversei com meus filhos e fui sincera em todos os tópicos. Expliquei, de modo que eles pudessem entender, que a mamãe estava grávida e não era o momento ideal para ter um bebê. Os dias de espera desde que tramitei a ação foram terríveis. Apenas uma mulher sabe o que é se ver obrigada a continuar uma gravidez não desejada. Para a sociedade brasileira, o aborto seria um estigma se fossem os homens quem engravidassem?
A resposta pouco clara de que a minha ação não havia sido negada, mas que na verdade sequer seria analisada, foi a segunda vez em que o Estado brasileiro falhou comigo. Perdi toda a esperança e me desesperei. Justamente naquele momento surgiu o convite para dar uma palestra na Colômbia.
Dois dias antes da viagem, passei pela pior experiência relacionada com esta situação até o momento. Desde o começo, soube enfrentar muito bem a avalanche de críticas nas redes sociais. Mas naquele domingo à noite, uma pessoa achou que tinha o direito de ir até a minha casa para pedir que eu não realizasse o aborto e me disse que, se não o fizesse, me daria de presente o enxoval do bebê. Era mais uma pessoa que não entendia meus motivos, como acontece com a maioria das mulheres na mesma situação.
Em 5 de dezembro, viajei à Colômbia. Foi a minha primeira viagem de avião, minha primeira vez no exterior, longe dos meus filhos. O que mais me chamou a atenção na Colômbia foram as semelhanças e as diferenças com o Brasil. Tão religiosa quanto o meu país, mas com uma visão mais humana das mulheres. Conheci muitas pessoas que trabalhavam duro para que as mulheres, principalmente as mais pobres, tivessem o direito a serem tratadas com dignidade. Tentei absorver toda a informação sobre como conseguiram chegar a este ponto, desde a modificação da Constituição colombiana até a luta diária contra o preconceito e a falta de informação. Diferente do Brasil, a Colômbia não finge mais que essas mulheres não existem e lhes garante a dignidade humana e a autonomia sobre os seus corpos.
Já no final do dia, me inteirei de que na Colômbia poderia realizar o procedimento legalmente. Fui bem recebida na clínica Profamilia e me deram todas as explicações sobre o procedimento. Optei pela aspiração. Também escolhi o método contraceptivo que usaria em seguida. Na sala de procedimentos, a primeira coisa que o médico fez foi colocar o implante contraceptivo no meu braço. Anestesia local, um pequeno orifício na pele, e em questão de minutos já havia terminado o que esperei quase um ano do SUS, o sistema de saúde gratuito do Brasil.
A ultrassonografia confirmou que eu estava na nona semana de gestação. Antes da aspiração, me deram anestesia local. Quando terminou, fui a uma sala de repouso e, 20 minutos depois, o médico veio me ver e me disse que, assim que me sentisse bem para caminhar, poderia ir embora. Eu me vesti, me deram as recomendações médicas e fui. O que senti naquele momento? Alívio. Nada mais. Voltei ao hotel e descansei a tarde inteira. Naquela mesma noite, saí e caminhei bastante, sem chorar, sem dramas e arrependimentos.
Voltei ao Brasil com a convicção de que sou a exceção. Há muitas brasileiras e latinas na mesma situação que eu, sem a perspectiva de uma alternativa como a minha, que terão que arriscar suas vidas, liberdade e o futuro de suas famílias por causa de uma sociedade machista e hipócrita. A luta delas também é a minha luta. Não estão mais sozinhas.