Milhares de pessoas pedem ao Congresso que despenalize a interrupção voluntária da gravidez. Votação é no dia 13
(El País, 05/06/2018 – acesse no site de origem)
A luta feminista se espalhou entre as gerações mais jovens da Argentina, que pressionam por mudanças. Em junho de 2015, uma enorme manifestação sob o lema #NiUnaMenos (“nem uma a menos”) pôs os feminicídios na agenda pública e reivindicou medidas para evitá-los. Nos anos posteriores, somou-se a exigência de igualdade salarial entre homens e mulheres. Nesta segunda-feira, dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas com lenços verdes, a cor que identifica a campanha pelo aborto legal, seguro e gratuito. “Aborto legal no hospital”, cantavam os manifestantes, em sua maioria adolescentes, enquanto percorriam a avenida de Mayo, em Buenos Aires, em direção ao Congresso, onde no próximo dia 13 será votado o projeto de lei que despenaliza a interrupção voluntária da gravidez.
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“Sem dúvida o verde tinge a marcha do NiUnaMenos. É um momento histórico, e as deputadas e os deputados têm que se conscientizar de que não podem decidir sobre políticas públicas impondo suas crenças religiosas e pessoais”, diz a jornalista Mariana Carbajal, uma das fundadoras do movimento que convocou a primeira mobilização, há três anos. “Hoje o custo político é não votar a favor da despenalização e legalização do aborto. Quem diz isso é a enorme quantidade de adolescentes que estamos vendo nas ruas, mobilizadas com lenços verdes e exigindo uma ampliação de direitos”, acrescenta Carbajal, abrigando-se da garoa sob um guarda-chuva rosa.
Secundaristas de 12 a 17 anos são maioria em muitas das colunas de manifestantes que tomaram o centro da capital argentina nesta segunda. “Queremos que cada pessoa tenha a opção de decidir se quer ou não abortar, e que não morra nenhuma mulher a mais por um aborto clandestino”, diz Lua, aluna do sexto ano, que compareceu à passeata com suas colegas de classe. “Estamos aqui por todas as garotas que não podem estar”, afirma Michele, de 17 anos, que participa pela primeira vez de uma passeata do NiUnaMenos. Na Argentina é ilegal interromper a gravidez exceto em casos de estupro e de risco para a saúde da mãe, mas centenas de milhares de mulheres desafiam a proibição e recorrem a abortos clandestinos. A cada ano são registradas entre 350.000 e 450.000 interrupções da gravidez no país, segundo estimativas citadas no Congresso pelo ministro da Saúde, Adolfo Rubinstein. Em 2016, quase 10.000 gestantes tiveram que ser internadas por complicações decorrentes de um aborto, e 43 morreram.
A reivindicação de aborto legal é acompanhada da necessidade de que as escolas ofereçam educação sexual integral para prevenir gestações indesejadas, que são sete de cada dez entre as adolescentes. A norma aprovada há 12 anos não é cumprida, dizem as estudantes, denunciando que em muitos colégios, especialmente os religiosos, elas recebem informação incompleta e enviesada. “Tivemos só uma aula de educação sexual em todo o ensino secundário, aos 15 (anos). Foi bastante informativa, mas só sobre relações heterossexuais, nada sobre pessoas do mesmo sexo”, denuncia Michele, aluna de uma escola católica no bairro de Palermo. “Neste ano viram que havia muito debate e tivemos uma aula pela primeira vez, mas foi ridículo, porque já estamos no sétimo [último ano do ensino secundário], é muito tarde”, diz Luzia. Prestes a completar 18 anos, conta que uma amiga sua abortou com comprimidos há alguns meses: “Foi uma situação angustiante, porque não sabia aonde ir se algo desse errado”.
Apesar da chuva fraca e da baixa temperatura nesta segunda em Buenos Aires, a participação foi elevada. “Calma, mamãe, que hoje não vou sozinha pela rua”, dizia o cartaz de uma jovem cercada de muitas outras manifestantes. Entretanto, o aborto não conta com o mesmo apoio unânime dado à luta contra os feminicídios, e se ouviram vozes críticas. Os antiabortistas transformaram em tendência no Twitter a hashtag #AbortoNoEsNiUnaMenos e viralizaram um vídeo contra a despenalização, protagonizado por familiares de vítimas de feminicídios que participaram de passeatas prévias. “Não se pode reduzir a magnitude do Nem Uma a Menos a uma parte de um debate, a uma forma de violência da qual não compartilho, que é o aborto”, opina na gravação Jimena Adúriz, mãe de Ángeles Rawson, assassinada aos 16 anos. Depois ouve-se Verónica Camargo, mãe de Chiara Páez, uma jovem de 14 anos morta por seu namorado quando estava grávida. “Se relacionarmos o #NiUnaMenos com o aborto me sinto mal, incômoda, porque se dizemos Nem Uma a Menos o bebê também é um a menos. Também temos que defender essa vida”, argumenta Camargo.
Nos últimos dois meses, desde que a Câmara dos Deputados começou a debater a despenalização do aborto em suas comissões, mais de 700 oradores apresentaram argumentos favoráveis e contrários. Terminadas as exposições, falta emitir juízo e votar o projeto de lei. As opiniões estão muito divididas: 112 deputados anunciaram voto a favor, e 115 contra. Há 29 que se ainda declaram indecisos. As feministas tentam convencê-los com as pesquisas na mão: quase todas mostram que mais de 50% da população respalda a descriminalização do aborto, um percentual que cresce entre os mais jovens. Os antiabortistas têm ao seu lado a Igreja, que endureceu sua postura nos últimos dias e conserva uma grande influência no norte do país.
A Argentina foi pioneira na América Latina em aprovar o casamento homossexual, em 2010, e a lei de identidade de gênero, em 2012. A campanha a favor do aborto legal, seguro e gratuito busca que o país volte a “fazer história” num continente onde só o Uruguai e a capital do México têm uma lei de prazos semelhante à da maioria dos países europeus.
Mar Centenera