(O Globo, 23/10/2014) Em 1997, 80 brasileiras ousaram declarar ter feito aborto em condições inseguras, desumanas e clandestinas. Aceitaram expor aquilo que se julga poder tornar inexistente por força da lei do silêncio. Foram capa da revista “Veja” e suas histórias estamparam uma sina feminina: a gravidez involuntária e os riscos de sua interrupção num contexto de ilegalidade e criminalização.
Leia mais: Conselho apoia opção de aborto até 3º mês (Folha de S. Paulo, 23/10/2014)
Aborto legal sofre resistência no Uruguai (Folha de S. Paulo, 23/10/2014)
Quase duas décadas depois, o quadro avançou muito pouco, e o sofrimento, a humilhação e a penalização das mulheres persistem; ampliam-se. A prática do aborto seguro e legal continua restrita a três casos (anencefalia ou outra deformidade grave do feto; estupro; e risco de vida da gestante), muito embora o Conselho Federal de Medicina já tenha recomendado o direito ao aborto “por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação”.
Na disputa eleitoral de 2010, a temática foi utilizada como forma de enterrar a questão, já que o assunto inibia a “hombridade” dos candidatos, alinhados contra o direito individual das mulheres. Após o acirrado debate, um manifesto com milhares de assinaturas foi entregue à então recém-eleita presidente. Pedia que não “sucumbisse a pressões eleitoreiras e conservadoras que pretendem tão-somente ocultar e desprezar o sofrimento de milhões de mulheres para quem o aborto é o último recurso”, e o garantisse no âmbito do SUS.
No atual debate eleitoral, o tema saiu do âmbito da luta pelo reconhecimento de um direito para transitar de forma absolutamente equivocada nas páginas de polícia. A busca pela interrupção de uma gravidez indesejada acabou associada a milícias, redes de corrupção e crime.
Criminalizando o aborto, mulheres continuam morrendo, agora em condições mais monstruosas. Não só estão expostas às gangues aquelas das camadas populares. Não pensem, leitores, que suas filhas, irmãs, mães, amigas, no desespero de interromper uma gravidez indesejada, vão escapar da rapina feroz dos que se servem da clandestinidade que o Estado e a sociedade impõem. Jovens das classes médias e altas passam por situação semelhante à de Jandira Magdalena e Elizângela, obrigadas a acompanhar a destinos subterrâneos pessoas desconhecidas, até bandidos, que lhes prometem uma solução, cujo preço a pagar em troca do segredo do ato pode ser a vida.
Serão ingleses, espanhóis, franceses, portugueses, holandeses, belgas e uruguaios criminosos, depravados ou sociedades em decomposição por assegurarem a dignidade de um aborto seguro? Ou seremos nós os corrompidos?
A sociedade brasileira foi às ruas no ano passado exigindo que o Estado assuma suas responsabilidades, garantindo direitos constitucionais. Esse Estado laico — que é o nosso — não pode se subordinar a pressões de qualquer credo. Tampouco nos há de calar. O direito à vida é um direito de todas as mulheres. E o aborto é um direito individual. Ignorar esse preceito básico é nos condenar a permanecer alheios a padrões de civilidade mínimos.
Manter o aborto na ilegalidade não é política de prevenção. É atitude covarde, que alimenta a corrupção e o crime, humilha. Pior: mata.
Lena Lavinas é professora do Instituto de Economia da UFRJ e Debora Thomé é jornalista
Acesse no site de origem: Aborto, o alto preço da ilegalidade, por Lena Lavinas e Debora Thomé (O Globo, 23/10/2014)