Clínicas clandestinas de aborto e técnicas populares levam a consequências fatais

04 de junho, 2014

(O Globo, 04/06/2014) Ana foi forçada ao aborto, no Sertão de Pernambuco. A adolescente de 15 anos ficou grávida do namorado, e coube ao pai do jovem planejar o fim da concepção indesejada. A polícia de Trindade, a 650 quilômetros de Recife, descobriu que a menina foi levada contra a sua vontade a um técnico de enfermagem, conhecido por fazer abortos clandestinos na região. A técnica usada, invasiva demais, acabou dando errado.

Com uma hemorragia, durante a madrugada, Ana foi levada pelo técnico e pelo sogro para a frente do Hospital Regional de Ouricuri, a poucos quilômetros da cidade da menina. Assim que ela chegou à sala de emergência, os médicos detectaram o óbito. O que os dois homens fizeram foi praticamente deixar o corpo na frente do hospital. Eles não permaneceram no lugar. Era janeiro de 2013.

Histórias como a de Ana são comuns num país conservador, que não discute o aborto, tratado quase sempre com um viés religioso e machista, e não como um problema de saúde pública. Por causa da clandestinidade, é comum a subnotificação, o que também ocorre com as mutilações ou mortes de mulheres que recorrem ao mercado negro. O caso de Ana, abandonada em frente a um hospital no interior do país, só não passou batido porque uma testemunha reconheceu o agressor.

Policiais civis começaram a investigar a história e descobriram o envolvimento do pai e da mãe do namorado de Ana, também um adolescente. O técnico de enfermagem está preso, segundo a polícia em Trindade. Os pais do adolescente estão foragidos, dizem os policiais. A morte da jovem foi o primeiro óbito materno no Sertão de Pernambuco em 2013.

GRAVIDEZ DE RISCO

Elineide morreu aos 42 anos, um dia depois do parto, e mobilizou entidades que atuam em defesa dos direitos da mulher. A doceira morava em Ceará-Mirim, cidade encostada em Natal. A gravidez era de risco, em razão da saúde do feto: o diagnóstico era de que o bebê não nasceria com vida.

A mulher decidiu, em conjunto com o marido, interromper a gestação, amparada na legislação brasileira, que permite o aborto em caso de risco de morte para a mulher. O hospital decidiu só fazer o procedimento com autorização da Justiça. O juiz indeferiu o pedido com base na “legislação aplicável à matéria” e em sua “convicção pessoal”.

Não haveria tempo hábil para um recurso na segunda instância do Judiciário. Na noite de 30 de março de 2010, o bebê nasceu morto. O parto só ocorreu depois de uma espera de quatro horas. Elineide morreu no dia seguinte, “sem direito a um acompanhante”, após sofrer uma parada cardíaca, segundo entidades de defesa da mulher que atuam no Rio Grande do Norte.

— A criminalização do aborto é muito danosa para a mulher. A grande maioria dos hospitais do SUS faz curetagem, que é uma prática obsoleta, como considerado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Os dados notificados de mortes são só a ponta do iceberg. Qualquer diminuição abrupta deve ser olhada com cautela, pois não há dados convergentes — afirma a médica epidemiologista Greice Menezes, pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia.

O fato de as mulheres recorrerem mais ao abortivo misoprostol — o citotec — de via oral pode explicar uma redução de mortes, segundo pesquisadores do tema, mas há situações em que o medicamento vendido no mercado negro pode levar a complicações à saúde da mulher. Boa parte é contrabandeada do Paraguai, com composições sem qualquer vigilância. Clínicas abortivas e técnicas populares também levam a consequências fatais.

— Quanto mais o aborto é inacessível, com restrições a medicamentos, mais mortes ocorrem — diz Télia Negrão, do Coletivo Feminino Plural.

O Ministério da Saúde se baseia em “técnicas estatísticas” para corrigir a subnotificação de mortes por aborto. Segundo a pasta, as notificações vêm melhorando nos últimos anos.

— Em cada estado está definido que deve haver serviços de referência (para atender mulheres que abortam na clandestinidade e recorrem posteriormente à rede pública). É a orientação do ministério — afirma o secretário de Vigilância em Saúde do ministério, Jarbas Barbosa.

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