Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU critica letalidade policial, uso indevido de dados digitais e limitações ao aborto legal
Em relatório publicado após a revisão do Brasil no Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU, o país foi criticado por falhas na proteção de crianças e adolescentes, sobretudo negros e pobres. O órgão internacional chamou a atenção para violência policial sistemática, o alto índice de homicídios infantis, o uso indevido de dados no ambiente digital e retrocessos no acesso à saúde sexual e reprodutiva.
Uma das principais recomendações do Comitê é que o Brasil adote medidas urgentes para conter mortes e desaparecimentos de crianças em operações policiais, com destaque para a população afro-brasileira. O órgão internacional pediu investigações independentes, responsabilização de agentes e a adoção de protocolos internacionais, como os de Istambul e Minnesota, para a apuração de mortes causadas por forças de segurança.
O Comitê também recomendou que o país proíba o uso de dados de crianças por sistemas de inteligência artificial e reforce a legislação sobre o ambiente digital. Em relação à educação, elogiou o decreto que revogou a militarização das escolas públicas, mas cobrou sua implementação efetiva em estados e municípios, além de melhorias em infraestrutura escolar e maior fiscalização das instituições privadas.
Em relação aos direitos de crianças e adolescentes LGBTQIA+ o Comitê recomendou que o Brasil respeito os seus direitos à identidade e que adote legislação que reconheça a existência de crianças transgênero e seus direitos. No campo dos direitos sexuais e reprodutivos, o Comitê expressou preocupação com os obstáculos enfrentados por meninas vítimas de violência sexual. Recomendou a plena aplicação da legislação que garante acesso ao aborto legal e criticou propostas legislativas em tramitação no Congresso, como o PL 1904/24, que equipara o aborto após 22 semanas ao crime de homicídio, mesmo em casos de estupro.
O que é o Comitê sobre Direitos da Criança da ONU e como funciona a revisão
Criado em 1991, o Comitê sobre os Direitos da Criança é o principal órgão internacional responsável por monitorar o cumprimento da Convenção sobre os Direitos da Criança e seus protocolos adicionais. Composto por 18 especialistas independentes de diversas nacionalidades, o Comitê analisa periodicamente os relatórios enviados pelos países signatários, incluindo o Brasil.
A revisão brasileira, realizada em maio de 2025 em Genebra, na Suíça contou com a presença de uma delegação oficial chefiada pela ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo. A sabatina incluiu questionamentos sobre racismo estrutural, letalidade policial, acesso à educação e insegurança alimentar.
Além do relatório oficial apresentado pelo governo, o Comitê considerou documentos enviados por organizações da sociedade civil, que forneceram subsídios críticos ao diagnóstico da situação brasileira. Esses relatórios paralelos são fundamentais para garantir uma análise independente e mais abrangente das condições reais enfrentadas por crianças no país.
Conectas e organizações parceiras denunciam retrocessos
A Conectas, em parceria com o Movimento Independente Mães de Maio, Plan International Brasil, Associação Serenas e o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde enviaram relatórios com dados sobre a violência de Estado e as barreiras enfrentadas por meninas no acesso à saúde sexual e reprodutiva.
Em um dos documentos, a Conectas denuncia o crescimento de 93% na letalidade policial no estado de São Paulo entre 2022 e 2024, associado ao desmonte de políticas de controle, como a redução do uso de câmeras corporais por policiais. O relatório também aponta para a falta de investigações independentes e para a impunidade sistemática em casos de mortes de crianças em operações policiais, como as de Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos, e Gregory Ribeiro Vasconcelos, de 17, na Baixada Santista.
Outro relatório, produzido em conjunto com organizações parceiras, aborda a violação dos direitos sexuais e reprodutivos. Em 2023, mais de 13 mil meninas menores de 14 anos deram à luz no Brasil. Apesar da legalidade do aborto em casos de estupro, o acesso ao serviço ainda é restrito e, frequentemente, impedido por objeções de consciência ou má informação de profissionais de saúde e do Sistema de Justiça. O documento também condena o avanço de propostas legislativas que dificultam ainda mais esse acesso.