Como grupos religiosos freiam os avanços para descriminalizar o aborto

01 de outubro, 2015

(Brasil Post, 01/10/2015) As eleições de 2014 definiram a Câmara dos Deputados nos próximos quatro anos como a mais conservadora desde a redemocratização.

Conservadora porque os pertencentes a igrejas evangélicas entraram em maior peso, ocupando agora 80 das 513 cadeiras. Isso significa um aumento de 14% da representação da Frente Parlamentar Evangélica, bancada dos dois deputados federais mais votados no Rio de Janeiro, Clarissa Garotinho (PR) e Eduardo Cunha (PMDB).

A primeira é filha de Antony Garotinho e já declarou publicamente ser contra o aborto por pensar gravidez como falta de prevenção.

O segundo é o responsável por derrubar a Portaria 415, um projeto que regulamentava o atendimento pelo SUS nos casos de aborto previsto por lei.

A portaria garantiria às pacientes todos os procedimentos inclusos nas normas técnicas descritas pelo Ministério da Saúde, englobando exames, medicamentos, curetagem (limpeza do útero), oferta de anticoncepcionais após o procedimento e consultas de retorno para acompanhamento.

O texto estabelecia um custo de R$ 443,40 e a presença de um médico clínico, um cirurgião e um ginecologista por procedimento.

A portaria foi divulgada no dia 21 de maio de 2014 e durou uma semana, sendo revogada no dia seguinte ao encontro do deputado Eduardo Cunha com o então ministro da Saúde, Arthur Chioro, sob a alegação de que o ato administrativo apresentava termos ambíguos que poderiam induzir à interpretação de que o aborto é legal no País sob qualquer circunstância.

O Estado é laico. Amém!

O grande número de parlamentares de direita no Congresso preocupa a socióloga Jolúzia Batista. “Não há diálogo. Eles nunca irão escutar o que temos para falar.”

Jolúzia integra a ONG Centro Feminista de Estudos e Assessoria. O jeito manso de falar disfarça a personalidade forte de quem trabalha na causa do aborto desde que deixou a cidade de Natal há 15 anos.

Ela diz não saber quantas clínicas clandestinas estão espalhadas por Brasília, sede da ONG, porque a fiscalização bateu forte após o caso de Jandira Magdalena dos Santos Cruz, moradora de Niterói de 27 anos encontrada morta depois de sair de casa para fazer um aborto.

Jolúzia não esconde sua aversão pelos membros da Bancada Evangélica. O principal motivo, diz, é ser contra a defesa de interesses fundamentados em questões religiosas no Brasil, um Estado laico.

Para ela, antes de começar a discutir a legalidade do aborto, é preciso analisar a atuação dos preceitos cristãos no exercício da política no País.

O deputado Marco Feliciano, membro da Frente Parlamentar Evangélica mais votado no estado de São Paulo, apresenta dois tipos de Estado e aconselha aos estudantes, principalmente, que os analisem melhor.

O primeiro seria o Estado laico, segundo ele perfeito para a nação e defensor de todas as religiões. O segundo seria o Estado “laicista”, que não confere o direito às religiões de serem professadas.

Ele diz que o argumento de que a religião é usada como motivo para a manifestação contra o aborto é um escape do real motivo: a libertinagem dos jovens apoiada por um governo de esquerda como o do Brasil.

Para o deputado, que costuma compartilhar suas opiniões ativamente por meio de mídias sociais, as pessoas devem ser conscientizadas de que a erotização das crianças é sustentada por políticas como as vacinas preventivas a partir dos 12 anos contra o HPV e a distribuição de preservativos em escolas públicas.

Perdão para quem?

Enquanto o Congresso se configura o mais conservador desde a redemocratização, no Vaticano, o líder da Igreja Católica arrisca declarações consideradas modernas.

Para o ano de Júbilo Extraordinário da Misericórdia que terá início em dezembro, o papa Francisco permitirá que padres perdoem mulheres arrependidas de terem abortado.

“Conheço bem os condicionamentos que as levaram a tomar essa decisão. Sei que é um drama existencial e moral […] O perdão de Deus não pode ser negado a quem quer que esteja arrependido.”

Essas foram as declarações do pontífice em carta oficial publicada no início de setembro.

A atitude pode ser considerada um passo inicial para a abertura da Igreja Católica, já que solicita aos sacerdotes acolhimento às mulheres que recorrerem a eles sem que julguem as condições de elas terem cometido o ato. A nova orientação também influencia decisões políticas.

Se por um lado a principal figura da Igreja Católica passa a pensar nas condições em que as mulheres precisaram recorrer ao aborto, solicitando o perdão a uma legião de seguidores mundialmente, por outro ainda o considera pecado e um “descarte de seres humanos”, segundo declaração feita em 2014.

A carta papal não passou despercebida. As Católicas pelo Direito de Decidir – grupo que luta pela igualdade nas relações de gênero na sociedade e na Igreja Católica – reivindicaram em carta-resposta que o papa vá além de apenas permitir o perdão ao aborto e reforçaram que, ao contrário do que foi dito na carta, em nenhuma circunstância as mulheres vivem o dilema do aborto de forma superficial.

E, sobretudo, pedem que “se considere que o aborto não é pecado quando resultado de uma decisão consciente e de maneira informada e orada, e quando a gravidez for fruto de um estupro, haja problemas de saúde, que a mulher corra risco de vida, situações de dificuldades econômicas ou sociais, ou se trate de meninas que tragicamente foram abusadas sexualmente, entre outras razões”.

Afinal, com ou sem perdão, as mulheres continuarão a fazer abortos. Legalmente ou não, ainda precisarão enfrentar barreiras.

São crianças como você

A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), elaborada em 2010 pela antropóloga Débora Diniz em parceria com o sociólogo Marcelo Medeiros, mostra que das 2.200 mulheres entrevistadas, 13% pertenciam a igrejas evangélicas, dois pontos percentuais abaixo das pertencentes à católica.

N.*, 21 anos, cresceu dentro de uma igreja batista. Parou de frequentar os cultos quando a irmã caçula confidenciou ser bissexual e a fez perceber o quanto a menina de 15 anos sofreria por conta da orientação religiosa dos pais, caso descobrissem.

Leva longe os olhos castanhos quando fala da infância religiosa e diz não concordar com o que os pais acreditam, mas que não suportaria vê-los magoados por conta de suas opiniões.

Por isso, momentos depois de relatar o aborto que realizou há 14 meses, espanta-se quando a mulher negra de vestido chega por trás da mesa do café e lhe avisa que vai ao supermercado do shopping center. “Era minha mãe. Sinto muita falta do colo dela. Queria contar, mas sei que ela nunca me perdoaria.”

N. namorava há três anos quando descobriu que estava grávida. O namorado, F., foi quem propôs que a menina pensasse na possibilidade de fazer um aborto.

“Ele disse desde o início que apoiaria qualquer decisão minha sobre o meu corpo.”

Foi F. quem peregrinou de farmácia em farmácia à procura do Cytotec, remédio proibido pelo Ministério da Saúde.

A aplicação acabou não provocando o aborto, e o casal precisou tomar emprestado dinheiro para pagar um médico que realizasse o procedimento.

Descendo uma das laterais de uma movimentada avenida da Zona Sul de São Paulo, as árvores que enchem as calçadas quase escondem o prédio amarelo de dois andares que abriga a clínica ginecológica particular.

Dentro, três bancos de espera e a secretária simpática ao telefone disfarçam mais um dos espaços para a prática do aborto ilegal na cidade.

O médico que realizou o aborto de N. é um senhor baixinho de óculos que sorri enquanto cumprimenta. Pede para o assistente de traje social que feche as portas de uma sala de reunião do segundo andar, junta as mãos e mostra a coragem de quem realiza abortos há 40 anos.

Aprendeu as técnicas do abortamento ainda na faculdade de Medicina e resolveu seguir os passos do professor que o ensinou por perceber que as mulheres continuariam a fazer aborto, fosse legal ou não.

Diz ter realizado quase dez mil abortos durante toda sua carreira, inclusive na filha, na época com 17 anos e estudante de Medicina. “Fico tranquilo em saber que ela passou pelo procedimento pelas minhas mãos e não num lugar sujo e sem equipamentos.”

Gesticulando, defende a legalização por acreditar ser uma questão de saúde pública:

“No Brasil, uma mulher morre a cada dois dias por conta de aborto clandestino. É um absurdo que as autoridades varram o problema para debaixo do tapete por pressão das igrejas”.

Os 3.500 reais cobrados de N. são uma garantia de que sua identidade será preservada, ainda que o médico modifique os preços quando percebe a condição financeira da paciente.

“Tem mulher que chega de Range Rover aqui e tem menina que nem onde morar tem. Por que uma tem que abortar numa clínica limpa perto de casa, com toda a assistência, e a outra tem que tentar sozinha na periferia?”

A pesquisadora Débora Diniz revela que 23% das mulheres que se sujeitaram ao procedimento têm escolaridade até a 4ª série do Ensino Fundamental.

Mulheres sem escolaridade ou fundamental incompleto recebem até ¼ de salário mínimo, o equivalente a 180 reais.

Levaria um ano e oito meses para que uma mulher nessas condições, desconsiderando qualquer tipo de despesa, pudesse recolher dinheiro suficiente para pagar a clínica da zona sul de São Paulo.

N., moradora da Cidade Tiradentes, conseguiu recolher o dinheiro contando sua história em um blog.

Os interessados em ajudar puderam doar quantias por um site e sanaram a dívida da menina com a amiga do namorado que emprestou o dinheiro.

“Fico pensando o que eu teria feito e acho que seria difícil continuar com a gravidez. Eu daria um jeito, da mesma maneira que outras milhares de mulheres fazem todos os dias.”

Ana Carolina Siedschlag e Érica Azzellini, estudantes da Faculdade Cásper Líbero

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