Virologista que identificou o primeiro caso de microcefalia tardia no Brasil alerta sobre os riscos de recém-nascidos infectados e não diagnosticados corretamente
(Época, 16/09/2016 – Acesse no site de origem)
O calvário das mães que deram à luz bebês aparentemente saudáveis durante a onda de medo do vírus zika pode não ter acabado. Um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) identificou um caso de microcefalia tardia. O desenvolvimento da doença foi notado após 6 meses de vida da criança. De forma nunca vista antes, o menino, nascido no dia 2 de janeiro deste ano, apresentou o vírus em sua forma infecciosa até 54 dias após seu nascimento, na urina e na saliva, o que mostra que a replicação e as lesões continuaram acontecendo nos primeiros meses de vida do bebê. De acordo com o virologista Edison Durigon, um dos responsáveis pelo estudo e professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, o bebê nasceu com o crânio medindo 32,5 centímetros, o que dificultou o diagnóstico inicial (segundo o Ministério da Saúde, há suspeita de microcefalia quando o diâmetro do crânio é igual ou inferior a 31,9 centímetros em meninos e igual ou inferior a 31,5 centímetros em meninas). Os exames feitos logo após o nascimento não detectaram qualquer anomalia no bebê.
As análises feitas pelos pesquisadores apontam que a transmissão aconteceu no terceiro trimestre de gestação, na 26ª semana, levando o bebê a ser infectado ainda no útero. “Até agora os pesquisadores diziam que os bebês eram mais suscetíveis ao vírus quando a mãe fosse infectada no início da gestação. A maioria dos estudos indicava que o maior risco era no segundo trimestre”, afirma Durigon. É o primeiro caso conhecido de infecção prolongada por zika em recém-nascido e foi publicado na revista médica New England Journal of Medicine. O cientista explicou os detalhes.
ÉPOCA – Por que demorou tanto para esse bebê apresentar sinais de microcefalia? Por que as lesões não foram identificadas antes?
Edison Durigon – Esse bebê nasceu com uma microcefalia muito leve. Ele nasceu com 32,5 centímetros de crânio e consideramos microcefalia somente abaixo dos 32. Estava no limite. Tinha um pouco de feições de microcefalia, mas passaria despercebido por qualquer pediatra. O que levou esse bebê a ser analisado foi a mãe ter tido zika após o segundo trimestre de gravidez. Na época, não foram feitos testes de laboratório. A mãe e o bebê só foram testados porque o pai da criança teve a doença após uma viagem à Paraíba.
Quando pensamos em microcefalia, relacionamos o caso a uma criança que se infecta no útero e já nasce com essa condição. E, pela primeira vez, a gente vê um caso no qual a criança nasce com o vírus e o vírus continua presente em seu organismo por mais dois meses sem lesões aparentes. Hoje, com 8 meses, a criança apresenta atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. Antes de publicar o artigo, colhemos algumas amostras para analisar como o bebê estava e percebemos que ele só olhava para um lado. Ninguém afirma nada, mas dá para ver que as lesões aumentaram um pouco porque o vírus continuou se replicando no bebê. [O zika] usou a criança como uma cultura viva.
A maior pergunta é quantas crianças estão nascendo hoje de mães que tiveram zika no terceiro trimestre de gravidez e só serão diagnosticadas quando começarem a ter deficiência motora, quando forem para a escola e não aprenderem, quando tiverem uma lesão mais séria.
ÉPOCA – É possível determinar se o vírus atingiu o tecido cerebral desse bebê no período gestacional ou se o afetou após o nascimento?
Durigon – Pelo que ele aparenta, as lesões começaram dentro do útero. O tipo de lesões e a quantidade indicam que o vírus fez isso ainda no útero e foi se agravando após o nascimento.
ÉPOCA – Outros tipos de deficiência são possíveis de prever agora?
Durigon – Agora não dá para prever outras lesões, só daqui para a frente. Esse menino deu sorte porque ele está sendo acompanhado pelo serviço de saúde e suas deficiências vão ser vistas e, se possível, sanadas.
ÉPOCA – O vírus que estava presente nas secreções (urina e saliva) dessa criança por quase dois meses poderia contagiar outras pessoas?
Durigon – Poderia. Os pais não, porque já haviam adquirido imunidade. Talvez uma avó, tia, um parente, quem cuidou dessa criança… No início, a gente pensou mais nisso mesmo. É um risco não só para a criança, mas também para quem cuida dela.
ÉPOCA – Recentemente, traços do zika, o RNA viral, foram encontrados em lágrimas. O próprio vírus foi encontrado nos olhos, na urina e na saliva. Já foi provado que o vírus pode ser transmitido por meio de relações sexuais e transfusão de sangue. É maior do que pensávamos o desafio de combater a transmissão do vírus?
Durigon – Precisamos ver quanto essa transmissão é efetiva. Ter o vírus não significa que você será capaz de contaminar outra pessoa. Se você me perguntar agora se uma pessoa que tem o vírus na saliva é capaz de transmitir a doença por beijo, eu não saberia responder. Mas posso afirmar que por via sexual o contágio ocorre. Isso ocorre porque, às vezes, o vírus está presente em alguma secreção que protege o organismo. Por exemplo, a mucosa da boca tem muitos anticorpos e, quando a gente encontra o vírus nessa mucosa ou no leite materno, ele está envolto em células de defesa, o que dificulta o contágio. Que transmite, transmite. Mas, dependendo da secreção, a infecção pode ser menos efetiva.
ÉPOCA – O grande medo da microcefalia das mulheres que tiveram filhos aparentemente saudáveis pode não ter acabado?
Durigon – Eu não queria criar essa expectativa ruim, mas corremos o risco. Quando essa criança nasceu, por exemplo, os testes exigidos aos recém-nascidos foram feitos, e ela passou em tudo. Nasceu normal. Esse menino só foi aparentar problemas depois dos 6 meses de vida.
ÉPOCA – A microcefalia tardia deve ser tratada como uma preocupação de saúde pública?
Durigon – Essas crianças vão ser um problema. Nós teremos uma geração de crianças podendo ter deficiências motoras e cognitivas importantes. Daqui a pouco, se essas crianças não começarem a acompanhar a idade escolar, por exemplo, você vai tirá-las da escola? Não vai. Você vai procurar uma escola especial, mas não estamos preparados para um número muito grande de pessoas. Imagine quantas crianças nasceram nessa onda do zika? São mais de 3 mil casos suspeitos e 1.800 casos confirmados até o momento.
Quando a mãe se infecta? Esse é o grande problema. O vírus pode chegar ao cérebro do bebê em qualquer dia da gravidez, até no último dia. Inclusive, uma das hipóteses iniciais era que essa criança tinha adquirido o vírus no nascimento, mas as lesões apresentadas indicavam um contágio dentro do útero.
ÉPOCA – Qual é a maior preocupação que essa descoberta nos traz?
Durigon – Você tem vários casos como esse passando despercebidos. É preciso testar as crianças contra o vírus zika. Não é porque a criança nasceu normal que ela não vai ter nada daqui para a frente. Mesmo as crianças que nascem com microcefalia, que deveriam ser analisadas, ninguém testa se o vírus ainda está se replicando ou não porque elas já nasceram microcefálicas. As crianças que nascem sem as lesões ninguém testa mesmo e a ideia é acompanhá-las.
ÉPOCA – Como poderíamos acompanhá-las?
Durigon – O problema é que não temos muitos lugares que fazem diagnóstico de vírus zika, e aí o Brasil cai naquela pobreza de país de Terceiro Mundo. A gente faz aqui [no ICB], o Instituto Adolfo Lutz também faz. Mas o Adolfo Lutz, por exemplo, não faz teste nas crianças sem microcefalia. A criança que nasce hoje tem dificuldades de fazer o teste no serviço público. O certo é que todo mundo faça os exames, e esse é o alerta. Há criança que está com o vírus aí, está piorando e ninguém sabe e nem vai saber se não fizer o diagnóstico.
ÉPOCA – Quanto custa um teste particular?
Durigon – Por volta de R$ 300. Alguns laboratórios chegam a cobrar mais de R$ 500.
ÉPOCA – As crianças que desenvolverem microcefalia tardia serão capazes de se desenvolver, ter uma vida normal e a expectativa de vida de um brasileiro médio ou não?
Durigon – Não sei dizer e ninguém vai saber responder a isso agora. O bebê teve lesões bastante sérias. As lesões se agravaram um pouco por causa do longo tempo de replicação viral. Mas as consequências dessas lesões não sei até onde vão interferir. Se vai ser um menino limítrofe ou não, se vai ter condição de ter uma qualidade de vida média… Pelo que a gente viu e pelo o que os pediatras falaram, acho que vai ter uma expectativa de vida boa porque as lesões são mais motoras do que cognitivas. É bem provável que tenha uma vida normal.
ÉPOCA – Já que os bebês não são testados e não têm tratamento, o que as mães podem fazer?
Durigon – Quem nasceu, nasceu. Não tem o que fazer. Se fizer o teste agora, não vai adiantar nada. Tem de fazer o teste ao nascer. Dificilmente uma mãe vai conseguir relacionar deficiências psicomotoras com o zika seis ou sete meses após o nascimento. O que tem de ser feito neste momento é um teste de sorologia, de anticorpo, que indica que a criança foi infectada pelo vírus. Esse teste, talvez, seja o mais importante daqui para a frente. Não vai ser tão cedo, não temos serviço de saúde para isso. Isso vai passar despercebido: o pessoal não está preocupado com uma criança que nasce normal, ainda mais se essa criança vem de uma classe social que não tem condição [financeira]. Um futuro possível que espera essa criança é estudar em creche e escola sem gente especializada para prestar atenção a essas lesões. É um alerta importante para a classe médica.