Li há algum tempo que as mudanças começam quanto você escolhe se importar. Acredito nisso. Violência é crime. E como tal deve ser denunciada, punida e não pode ser tolerada de forma alguma pela sociedade. É urgente que comecemos a nos importar com isso. A violência contra uma criança não atinge só a vítima, mas sim todos nós, pois viola direitos humanos básicos e universais.
Parece óbvio, mas, infelizmente, para muitos ainda não é. Lembro que não faz muito tempo que um grande portal de internet se referiu ao estupro de uma garota de 12 anos pelo padrasto como “sexo entre menina e padrasto”. Graças à indignação de centenas de pessoas, a matéria foi editada e o crime chamado pelo que é: estupro.
Um recente julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ) do caso envolvendo o estupro de uma menina de 12 anos por um homem de 20, que teve como consequência a gravidez da adolescente, me fez recordar esse episódio.
“Ao argumentar que a ‘antecipação da fase adulta não deve causar mais danos especialmente à criança gerada nessa união’, o STJ nitidamente deixa de garantir a proteção de uma menina que teve seus direitos violados”, diz a nota de repúdio publicada pela ONG Plan International Brasil, que reforça ainda o direito da adolescente de 12 anos vítima de um estupro à interrupção da gravidez. Direito que está previsto no Código Penal de 1940 e volta e meia é negado.
Organizações de direitos humanos, como a Agenda 227 e uma série de coalizões, coletivos, entidades e movimentos da sociedade civil que atuam pela defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, também assinaram na semana passada nota produzida pela Frente Parlamentar Mista de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente em repúdio à decisão do STJ.
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, o Brasil registrou, em 2022, o maior número de estupros da história. Foram 74.930 casos e as principais vítimas são crianças: 61,4% tinham até 13 anos. Nesse período, foram registrados 14.293 nascidos vivos de meninas com menos de 14 anos. Se considerarmos a série histórica do Datasus, de 1994 a 2022, esse número é ainda maior: em média 25 mil garotas dessa faixa etária deram à luz a nascidos vivos ao ano.
Adolescentes com menos de 14 anos são considerados, por lei, incapazes de consentir, o que torna qualquer ato sexual em que estejam envolvidos “estupro de vulnerável”. “Meninas que sofreram violência deveriam ter direito ao aborto seguro”, diz Cynthia Betti, diretora executiva da Plan International Brasil, em entrevista exclusiva a esta coluna, reforçando que, nesses casos, há a chamada violência sexual presumida. “Achar que uma menina de 12 anos que foi violentada não tem direito ao aborto é deixar a vida dela em segundo plano”, diz ela.
Segundo Cynthia, o esforço hoje é para não retrocedermos nessa questão. “Esse é o grande risco”, explica. “Temos lutado nos últimos anos contra o retrocesso e não com foco em avanço. É muito frustrante”, desabafa.
Razões para se preocupar não faltam. “Grupos conservadores têm intensificado a atuação para barrar o aborto legal no Brasil, ao mesmo tempo em que promovem projetos de lei que buscam reverter esse direito”, alerta o portal feminista Catarinas.