Estão abertas as inscrições, de 17 de dezembro a 26 de fevereiro de 2021, para envio de artigos descritivos sobre a experiência dos serviços de saúde no atendimento das meninas, adolescentes e mulheres vítimas de violência sexual, principalmente nos casos que resultam em abortamento legal, durante a pandemia de Covid-19. Podem participar profissionais e acadêmicos de serviços de referência no atendimento à violência sexual e ao aborto legal, envolvendo as áreas da medicina, enfermagem, psicologia, assistência social, terapia ocupacional, dentre outras. Os textos selecionados irão compor a publicação de uma obra coletiva virtual, no formato e-book com acesso gratuito, que consiste numa coletânea de artigos. A iniciativa é do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil), com o apoio da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice – GDC/Brasil).
A divulgação dos artigos selecionados está prevista para ocorrer em 25 de abril de 2021. Serão valorizados os artigos que abordarem as dificuldades encontradas nos serviços de aborto legal no contexto da pandemia pelo novo coronavírus, assim como a influência religiosa nestes âmbitos e a forma como ocorrem, e estratégias para manutenção dos serviços. Como explica a advogada Sandra Lia Bazzo, co-coordenadora do Cladem Brasil, a proposta é ter um diagnóstico que possibilite o acesso a dados e informações, ao conhecimento sobre alternativas e práticas adotadas pelos serviços e a outros resultados que possam ser utilizados como fonte de pesquisa para pesquisadoras, ativistas, jornalistas e demais profissionais engajadas na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no Brasil.
“Pretendemos captar a experiência desses profissionais, porque sentimos a necessidade de ouvir retratos dessas realidades, especialmente no contexto da pandemia da Covid-19. Já havia poucos serviços antes, sabemos que com a pandemia muitos foram fechados, outros readequados. Queremos saber como estão se estruturando, se tiveram experiências que possam servir de boas práticas para os demais. É uma maneira de voltar o olhar para a realidade concreta, para a vivência das mulheres quando acessam esses serviços, mas também daquelas/es profissionais que prestam, ou deveriam prestar, assistência às pessoas em situação de violência sexual e ao abortamento legal”, explica a advogada Sandra Lia Bazzo, co-coordenadora do Cladem Brasil.
O caso da menina de 10 anos que, estuprada por um familiar, precisou ser levada para outro Estado, em agosto deste ano, para acessar o direito ao abortamento garantido por lei, é ilustrativo do que ocorre no país. Na contramão do Código Penal, de 1940, da Norma Técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes (MS, 2012) e da Norma Técnica Atenção Humanizada ao Abortamento, o caso que parecia ser isolado reacendeu o debate sobre o acesso das meninas ao direito ao aborto legal.
No período de 1994 a 2018, o país registrou o nascimento de 655.836 bebês gerados por meninas de 10 a 14 anos, o que equivale dizer que mais de 27 mil crianças foram mães por ano no Brasil. Nesses indicadores, vemos também o peso da desigualdade racial num país atravessado pelo racismo, pois 51,67% dessas crianças são negras, 26,42% brancas, 0,42% amarelas, 1,79% indígenas e 19,70% delas não informaram a raça cor.
Frente a um contexto de violação sistemática dos direitos humanos e fundamentais das meninas e mulheres que atinge países da América Latina e Caribe, o Cladem desenvolveu a Campanha “Jugar o Parir – Embarazo Infantil Forzado en América Latina y el Caribe” (Brincar ou dar à luz – Gravidez infantil forçada na América Latina e no Caribe), motivada pelo estudo “Niñas Madres. Embarazo y maternidad infantil forzada en América Latina y el Caribe” (Meninas mães. Gravidez e maternidade infantil forçada na América Latina e Caribe), desvelando toda a fragilidade das políticas e serviços públicos de atenção à violência sexual e ao aborto legal nesses países.
Situações de maternidade infantil, em que meninas são expostas triplamente à tortura, por serem violadas, engravidarem e viveram a maternidade obrigatória, são realidade em países estruturados por fundamentalismos político-religiosos, como observa a representante da organização: “se temos informações que a situação das mulheres já é grave durante a pandemia, sabemos que para as meninas seja ainda mais, por isso, a tentativa de entender as dificuldades das/dos profissionais de saúde, ter uma outra perspectiva dos problemas e pensar estratégias de ação para quem está na ponta. Muitas pesquisas não ultrapassam os muros universitários e poderiam contribuir muito com as organizações feministas, inclusive para a formulação de proposições legislativas, para enriquecer o debate e trazer dados que talvez não sejam vistos”, afirma a advogada.
Bazzo lembra que o estupro, uma das situações que dá à mulher o direito ao abortamento legal, usado como “tática de guerra” em países em conflito armado, também ocorre com meninas e mulheres em locais como o Brasil, nas localidades periféricas cujas populações precisam lidar com os efeitos perversos do narcotráfico. Uma realidade que faz com que essas vítimas se sintam desmotivadas a buscar o serviço, principalmente quando a notificação à polícia se torna obrigatória, conforme a Portaria nº 2.282 do Ministério da Saúde, modificada pela Portaria 2.561. “A portaria expõe as mulheres a uma situação ainda maior de vulnerabilidade, inclusive de risco à sua vida, por precisarem denunciar o agressor. Soma-se aos obstáculos institucionais já existentes, dando peso de lei à perseguição das meninas e mulheres, na contramão do Código Penal de 1940, e dos direitos previstos na Constituição de 1988 e nos instrumentos internacionais de direitos humanos”, analisa a advogada.
Acrescenta que: “o estupro como ‘arma de guerra’ entre gangues do tráfico é muito mais um problema social. Se não houver política pública que atenda a dimensão e complexidade desse problema, ele vai continuar existindo, por isso a importância de documentar relatos sobre esse tipo de atendimento. Este é apenas um exemplo da impertinência de vincular a assistência em saúde nos casos de violência sexual à denúncia criminal”.
Uma pesquisa divulgada em junho denunciou os impactos da crise sanitária, intensificados por decisão política: apenas 55% dos hospitais mantiveram o serviço de abortamento legal durante a pandemia. O levantamento revelou ainda que diversos funcionários da saúde desconhecem as possibilidades de aborto previstas em lei. Cristião Fernando Rosas, médico ginecologista e obstetra e coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir/Doctors for Choice – Brasil, explica que a pandemia levou a uma situação de contingenciamento, na qual profissionais foram deslocados para outros serviços, resultando em diminuição da disponibilidade das equipes. Acrescenta-se a isso a redução dos insumos de planejamento familiar em muitos ambulatórios que acompanhavam pacientes vítimas de violência ou pós-abortamento legal. “Dos artigos sobre as experiências, vivências, vão surgir ações, dificuldades, desafios que a equipe enfrentou, as características de cada serviço. São experiências nas quais outros serviços podem se espelhar para resolver ou solucionar problemas, obstáculos, barreiras que eles vêm enfrentando, principalmente para os serviços e para profissionais de saúde, como também para pesquisadoras e ativistas do campo dos direitos humanos das mulheres”, afirma o médico.
Em 4 de abril, a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou um comunicado classificando os serviços de saúde reprodutiva como “essenciais”. Levando em conta a orientação internacional, a Nota Técnica 16/2020 do Ministério da Saúde sobre o acesso à saúde sexual e saúde reprodutiva no contexto da pandemia, publicada em junho, incluiu o acesso a métodos contraceptivos e ao abortamento legal na lista dos serviços essenciais. O governo, porém, revogou a Nota e exonerou os profissionais que a elaboraram, exacerbando as restrições impostas pela pandemia, ao contrário de aliviá-las, por meio uma política de afirmação de práticas anti-científicas e anti-direitos. “Tem serviço que ainda exige a notificação à polícia, outros que resistem. Os serviços estão sem apoio, não dá para contar com o Ministério da Saúde […] Essa coletânea é uma oportunidade, porque é um momento tão histórico da humanidade, principalmente num contexto que temos tantas barreiras de acesso, a gestão pública e os responsáveis criam tantas dificuldades, com a pandemia isso se intensificou. A gente tem essa oportunidade de mostrar quem são essas heroínas e heróis que apesar de tudo criam estratégias para manter o serviço em funcionamento”, assinala Rosas.
O comitê de seleção das propostas será constituído por integrantes do Cladem/Brasil e parceiras/os do Doctors for Choice. A publicação será disponibilizada gratuitamente no site do Cladem.
Sobre o Cladem
O CLADEM é uma rede feminista que trabalha para o pleno exercício dos direitos das mulheres, usando o direito como uma ferramenta para a mudança. Com representações em dezesseis países da região, no Brasil o Cladem atua desde 1992 articulando pessoas e organizações feministas da América Latina e do Caribe em diferentes ações de promoção dos direitos humanos das mulheres. A organização atua em nível regional e nacional no monitoramento dos direitos humanos, no litígio internacional, em campanhas e formação em direitos humanos das mulheres.
Sobre a Global Doctors For Choice – GDC/Brasil
A Rede Médica pelo Direito de Decidir – Global Doctors for Choice/Brasil é vinculada à rede internacional de médicos articulados em mais de 25 países ao redor do mundo, comprometidos com a defesa dos direitos humanos e com a prestação de cuidados médicos da mais alta qualidade, fundamentados na ciência. Por meio da defesa de políticas públicas e práticas médicas baseadas em evidências, nos esforçamos para proteger e expandir o acesso a cuidados abrangentes em saúde reprodutiva para mulheres e meninas.