(El País, 01/12/2014) Ativistas turcos pelos direitos dos homossexuais lançaram nesta semana uma campanha on-line contra a política da instituição Crescente Vermelho de rejeitar o sangue doado por homossexuais do sexo masculino. Em seu procedimento de rotina para receber as doações, o Crescente Vermelho turco (equivalente local da Cruz Vermelha) faz perguntas sobre a saúde e a vida privada dos candidatos a doador. No formulário, cada doador do sexo masculino precisa responder se “fez alguma vez sexo oral ou anal com um homem, utilizando ou não preservativo”. Quem responde afirmativamente é vetado para sempre como doador.
“Essa norma contradiz os princípios institucionais antidiscriminatórios e de proteção da dignidade humana”, diz o texto da campanha, apoiada por 19 entidades LGTB (lésbicas, gays, transexuais e bissexuais) da Turquia. “Como os heterossexuais também enfrentam o mesmo risco de contágio durante o sexo, fica claro que essa exigência não se apoia no interesse médico.” A declaração diz ainda que a prática viola a Convenção Europeia de Direitos Humanos e a Constituição turca.
A Turquia não é o único país que mantém esta norma. Cerca de 50 nações, inclusive o Brasil, impedem os homossexuais de doarem sangue, por receio de que isso contribua para a difusão do vírus da AIDS. Em 1977, quando essa epidemia chegou aos Estados Unidos, havia mais temor com a nova doença do que conhecimentos científicos a respeito dela. Essa combinação de medo, ignorância, preconceito e homofobia – mais prevalente na sociedade daquela época do que hoje – levou o país a vetar a doação de sangue por homossexuais do sexo masculino. A medida era – e ainda é – justificada pelo fato de adeptos de práticas homossexuais masculinas estarem mais propensos à contaminação por HIV, hepatite e outras doenças transmissíveis pelo sangue e por fluidos corporais. Apesar do grande conhecimento atual sobre o HIV, a proibição continua em vigor nos EUA, mas uma mudança pode ocorrer já nesta terça-feira. Foi preciso esperar 37 anos para isso.
O enfermeiro Blake Lynch, de 23 anos, da Carolina do Sul, foi doar sangue para uma amiga que sofre de anemia falciforme. Foi rejeitado por causa da sua orientação sexual, o que o levou a criar a ONG Banned4Life (“proibido pelo resto da vida”). Ele já coletou mais de 50.000 assinaturas contra a proibição. “Não deveriam focar a orientação sexual, e sim os comportamentos sexuais de risco”, opina Lynch. “Meu companheiro e eu não temos relações sexuais perigosas, mas querem comprovar nossa orientação sexual e nos proibir de doar. É injusto”, acrescenta o ativista.
Revisão nos EUA
Em 13 de novembro, um grupo de especialistas recomendou pela primeira vez a revogação da proibição nos EUA. Dos 18 membros da comissão encarregada desse parecer, 16 votaram a favor de que a proibição seja limitada a um ano após a última atividade sexual com outro homem. Em 2 de dezembro – um dia depois da celebração do Dia Mundial de Luta contra a AIDS, nesta segunda-feira –, a FDA (agência sanitária governamental que proibiu a doação em 1977) anunciará sua decisão a respeito disso.
Outros grupos com risco elevado de transmitir infecções, como usuários de drogas intravenosas, prostitutas, portadores do HIV e receptores de transplantes de tecidos ou órgãos animais, também são proibidos de doarem sangue. A medida afeta também mulheres transexuais que fazem sexo com homens. “A FDA considera que os nascidos homens – apesar da sua carga cromossômica – são homens inclusive após cirurgias de mudança de sexo”, afirma um porta-voz da agência. “Os homens que fazem sexo com outros homens representam aproximadamente 2% da população dos Estados Unidos, embora seja a população mais afetada pelo HIV”, diz a FDA em seu site.
Na atualidade, praticamente todos os hemocentros de países desenvolvidos já submetem as amostras recebidas a exames que detectam o HIV e outros agentes patológicos – uma prática que, por si só, já tornaria a restrição sem sentido. Porém, o vírus causador da AIDS pode levar até duas semanas para se tornar detectável no organismo, embora seja transmissível nesse período de latência. No caso da hepatite B, essa janela é de dois meses, tempo necessário até que se acumule uma carga viral suficiente para ser detectada nos exames.
Na França, Áustria, Alemanha, Irlanda, Dinamarca, Bélgica e Grécia, o veto vitalício às doações de sangue permanece em vigor, apesar de o Tribunal de Justiça da União Europeia ter decidido em julho que isso viola a legislação comunitária. “O simples fato de um homem manter ou ter mantido relações sexuais com outro homem não constitui uma ‘conduta sexual’, no sentido da diretriz, que justifique sua exclusão permanente da doação de sangue”, diz a decisão. A sentença foi proferida em resposta a um cidadão francês que se queixou de discriminação ao tribunal europeu, com sede em Estrasburgo. Nos últimos anos, em todo o Espaço Econômico Europeu (UE, mais a Islândia, Liechtenstein e Noruega), só houve aumento das contaminações dentro do grupo populacional dos homens que praticam sexo com outros homens. O aumento foi de 33% desde 2004, segundo um relatório do Centro Europeu para a Prevenção e Controle de Doenças.
Países de fora da UE, como Noruega, Suíça, Israel, Arábia Saudita, Filipinas e China, tampouco permitem que um homem doe sangue depois de ter relações homossexuais, mesmo que com preservativo. Reino Unido (exceto a Irlanda do Norte), Suécia, Finlândia e Japão impõem um ano de carência a partir da última atividade homossexual. Na Austrália, onde o veto foi reduzido de 5 anos para 12 meses – medida idêntica à que os EUA cogitam agora –, um estudo científico não apontou um aumento na transmissão do HIV.
Na vizinha Nova Zelândia, o prazo também caiu de cinco anos para um. Já o Canadá revogou em 2013 a proibição vitalícia, substituída por uma carência de cinco anos. A África do Sul – país com o maior contingente mundial de soropositivos, mais de 6 milhões de indivíduos – ampliou em maio o veto de seis meses, antes aplicável apenas a homens homossexuais, mas que passou a valer para qualquer pessoa que iniciar um novo relacionamento. Além disso, as autoridades sul-africanas não aceitam doações de pessoas que mantenham mais de um parceiro sexual. Uma porta-voz do Serviço Nacional de Doação da África do Sul admitiu que a política discriminatória anterior se amparava em estatísticas e tendências internacionais, sem levar em conta as condições próprias do país, onde a pandemia afeta sobretudo os heterossexuais.
A Rússia permite a doação de sangue por homossexuais desde 2008, mas em agosto de 2013 o político Mikhail Degtiariov, vice-presidente do Comitê de Ciências do país e candidato à prefeitura de Moscou pelo Partido Liberal Democrático, propôs “emendas na lei sobre a doação e nas regras do Ministério da Saúde de modo a voltar a incluir a homossexualidade na lista de contraindicações para a doação de sangue”. A proposta acabou sendo rejeitada pelo Parlamento russo.
Muitos países latino-americanos também rejeitam doações de homossexuais do sexo masculino. A lista abrange Colômbia, Venezuela, Brasil, Peru e Argentina (embora a doação seja permitida na cidade de Buenos Aires). Outros países da região, como Chile, Costa Rica e México, alteraram recentemente o veto, proibindo agora as doações de qualquer pessoa que tiver mantido relações sexuais de risco, independentemente da sua orientação sexual. A Bolívia e o Uruguai permitem doar sangue, embora no caso uruguaio isso só possa acontecer após um ano de abstinência das relações homossexuais.
Arbitrariedade transformada em regra
Os períodos de carência demonstram a arbitrariedade que persiste após ser eliminada a proibição vitalícia. Diferentes entidades científicas e médicas dos Estados Unidos, como a Cruz Vermelha, sugerem eliminar completamente a proibição, já que ela não se ampara em comportamentos individuais, e sim na orientação sexual. A União Americana das Liberdades Civis se opõe ao período de um ano, pois isso “impedirá que dois homens que mantêm uma relação monogâmica possam doar sangue”. “Essa norma não distingue entre relações de sexo seguro e de alto risco”, alerta a ONG. Lynch comemora a iminente a decisão, mas critica o prazo de um ano sem relações homossexuais. “Gays e homens bissexuais que mantêm uma relação fechada e que são saudáveis continuarão sendo impedidos de doar sangue”, lamenta. A defesa da FDA a essa crítica é que não foi possível definir perguntas que identificassem com segurança quais homossexuais estariam expostos a um menor risco de infecção.
Segundo a OMS, em 39 países o sangue doado não costuma ser analisado rotineiramente em busca de infecções transmissíveis por transfusão, e apenas 16% das doações em países de baixa renda são analisadas em laboratórios com padrão de qualidade referendado. A prevalência do HIV em doações de sangue nos países desenvolvidos é de apenas 0,002%, contra 0,85% em países pobres. A OMS, uma agência da ONU, recomenda que todas as doações de sangue sejam analisadas em busca de infecções, e que os doadores sejam voluntários e de baixo risco.
Fermín Grodira
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