Fumacê ou pesticida em avião não resolvem epidemias do aedes

17 de julho, 2016

(O Globo, 17/07/2016) Em vez jogar inseticida de avião, o Estado deve garantir acesso regular a água encanada e saneamento, recolher e tratar o lixo, cuidar de situações de abandono.

Um monomotor pulverizando veneno em áreas densamente povoadas. O absurdo deste cenário tem sido muito criticado em noticiários e redes sociais desde que o Diário Oficial publicou a Lei 13.301, que prevê pulverização de inseticidas com aeronaves para controle do Aedes aegypti.

A medida já seria inaceitável pelo bom senso quanto ao risco à saúde e prejuízo ambiental. Mas, do ponto de vista da eficácia para o controle do mosquito, a ação pode ser desastrosa. Estudamos o Aedes há mais de 20 anos, e dezenas de cientistas de todo o mundo fazem o mesmo há mais de um século. Considerando tudo o que se sabe sobre sua biologia e comportamento, nada nesta proposta parece fazer sentido.

Em primeiro lugar, precisamos dizer o que ninguém gosta de ouvir sobre o mosquito: não existe solução mágica. O Estado deve garantir saneamento, acesso regular à água encanada, recolher e tratar o lixo adequadamente, cuidar de situações de abandono. Da mesma forma, o cidadão precisa remover este “inquilino”, que compartilha nosso endereço. É na precariedade das ações do Estado e na falta de compromisso ambiental e de mobilização dos cidadãos que o mosquito se instala e se espalha.

Voltando ao avião, qual o efeito esperado sobre o mosquito? Este inseto vive dentro de nossas casas, gosta de sombra e água fresca. Décadas de aplicação de inseticidas como malathion e piretroides com carros fumacê, muito mais próximos de nossas janelas, não impediram a disseminação do Aedes. O que se pode esperar, então, de inseticida (neurotóxico, diga-se) vindo do céu, caindo sobre os telhados, as copas das árvores, os rios e lagos e as nossas cabeças?

Inseticidas são remédios ou venenos. Em especial, contra o mosquito adulto — o famoso “fumacê” —, não são, nem no Brasil nem em nenhum outro lugar, métodos de prevenção. Apenas são indicados para tentar conter epidemias, com a aplicação em áreas onde as pessoas doentes estão concentradas.

Sem contar que esse mosquito não se mata facilmente com inseticida. Controle se faz eliminando águas paradas, impedindo o nascimento, um trabalho semanal, já que este é o tempo para que um ovo de Aedes vire um adulto voador. Um hábito que precisa ser rotineiro, assim como escovamos os dentes.

Foi justamente a fé em soluções fáceis e rápidas que nos trouxe à atual situação frágil e desconfortável: a resistência dos mosquitos aos inseticidas. Por causa da resistência, hoje, no Brasil só sobrou um com efeito sobre os Aedes adultos, o malathion. É o único que poderia ser lançado de tais aviões.

Mas mosquitos resistentes nascem assim como nós nascemos com cabelos lisos ou crespos, olhos claros ou escuros. Então, quando usamos inseticidas, damos chance para que estes mosquitos — que já nasceram resistentes — fiquem mais frequentes, pois apenas aqueles que são sensíveis morrem. Seria comparável a privilegiar pessoas de olhos azuis ou ruivas. Ao final de algumas gerações, a variedade vai embora, e só restam os mosquitos resistentes.

As partículas de um inseticida dispersado por aeronave não têm destinatário certo. Matarão também muitas espécies de insetos não nocivos, causando prejuízo ambiental. Queremos ter uma nova “primavera silenciosa”, como a descrita pela autora Rachel Carson em relação ao uso do DDT, inseticida que tem hoje sua nocividade amplamente reconhecida? O prejuízo também é sanitário, porque a aplicação aérea pode resultar na resistência de insetos que transmitem outras doenças (malária, leishmanioses e filarioses, para citar apenas algumas). São insetos que compartilham o território do Aedes e seriam igualmente atingidos por inseticidas lançados do céu. Queremos de uma só vez perder as poucas armas ainda disponíveis contra doenças transmitidas por insetos?

E, mais uma vez voltando ao avião, é importante antecipar outro efeito colateral. É provável que muitas pessoas se sintam “seguras” ao ver aviões derramando inseticida sobre as cidades. Que efeito pode ter esta falsa sensação de segurança sobre as ações semanais de prevenção – estas sim, seguramente eficazes?

Denise Valle e Ricardo Lourenço são pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz; Pedro Lagerblad de Oliveira é pesquisador da UFRJ.

por  Denise Valle/Ricardo Lourenço/Pedro Lagerbald de Oliveira

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