Relação de vírus bovino com zika e microcefalia é frágil, diz pesquisador

06 de julho, 2016

(Folha de S. Paulo, 06/07/2016) Na última semana tornou-se pública uma hipótese, investigada por cientistas do Rio e da Paraíba, de que um vírus que afeta bovinos poderia ser corresponsável pelo surto de microcefalia no país. No entanto, segundo um colaborador do estudo, não há base experimental ou biológica para essa conclusão.

Eduardo Flores, virologista e professor titular da Universidade Federal de Santa Maria, estuda o VDVB (vírus da diarreia viral bovina) há 25 anos, e conta ter sido procurado pelos pesquisadores para fazer alguns testes.

 

Segundo a Folha apurou, a pesquisa é capitaneada pelo grupo do professor Almilcar Tanuri e de seu colega Rodrigo Brindeiro, da UFRJ. Também é protagonista um grupo do Ipesq (Instituto de Pesquisa Professor Joaquim Amorim Neto), da Paraíba, comandado por Adriana Melo, uma das primeiras a apontar a relação zika-microcefalia.Os cientistas da UFRJ teriam realizado um sequenciamento de última geração em tecidos de fetos abortados e em recém-nascidos com más-formações. Eles teriam encontrado fragmentos de RNA (material genético) viral.

HIPÓTESE FRÁGIL - O que o vírus VDVB, que afeta bovinos, tem a ver com a microcefalia em bebês?

Os experimentos conduzidos por Flores, segundo relata, teriam o objetivo de servir de confirmação desses achados. Houve busca por antígenos virais (envoltórios proteicos do vírus), por material genético (RNA) e anticorpos nas mães (exames sorológicos).

O somatório dos resultados negativos obtidos em seu laboratório na UFSM junto à divulgação precoce dos resultados o fez divulgar nota na página da Sociedade Brasileira de Virologia dizendo:

“Após […] análises, o nosso grupo não encontrou nenhum indicativo da presença do VDVB […] Não detectamos nenhuma indicação sorológica de que as mães dos bebês afetados tenham tido contato prévio com o vírus. Ou seja, todos os resultados foram negativos.”

“Eu serei o primeiro a mudar de opinião caso isso tenha alguma evidência definitiva no futuro, mas eu não posso colocar em risco a minha credibilidade conquistada em 30 anos de carreira em uma divulgação no mínimo precipitada como essa”, disse à Folha. “Enviei uma mensagem eletrônica ao grupo dizendo que, por não estar absolutamente convencido da veracidade dessa associação, prefiro não fazer parte da publicação baseada nos resultados obtidos até o presente.”

HUMANOS

O virologista Paulo Roehe, também especialista em VDVB há 30 anos, professor titular da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e que não participou do estudo, diz que seria estranha uma infecção em humanos. “Em 70 anos que se conhece o vírus, isso nunca aconteceu.”

Outro fator importante, lembra, é que o VDVB não é um arbovírus, ou seja, não seria transmitido por vetores artrópodes como o aedes.

Uma das hipóteses levantadas pelo professor para o surgimento desse material em amostras é a contaminação de reagentes de laboratório como o soro fetal bovino, usado em cultura de células (que podem ser infectadas com vírus).

“O VDVB é bastante difundindo em rebanhos do país. Como a produção do soro fetal bovino requer coleta de sangue de vários indivíduos, é fácil que o produto final esteja contaminado. Quando se trabalha com o VDVB, essa é uma preocupação que sempre tem que estar presente.”

O vírus VDVB é um pestivírus da família dos flavivírus, a mesma do vírus da dengue e da zika. Os efeitos de saúde causados em bovinos (problemas respiratórios, lesão de mucosas, baixa fertilidade, abortamento e más-formações fetais) poderiam ter motivado os cientistas da UFRJ e Ipesq a pensar em uma possível ligação com as más-formações hoje somente associadas ao vírus da zika. “Mas, com as evidências atuais, eu não apostaria um centavo nisso”, diz Flores.

Uma possível implicação de uma falsa associação seria o impacto na indústria de leite e carne. “As pessoas parariam de consumir produtos de origem bovina, e não há, até agora, absolutamente nenhuma razão para isso”, diz.
Sobre uma possível contaminação das pessoas por meio da ingestão de carne e leite, Roehe diz que seria improvável “ou todos nós estaríamos contaminados”.

OUTRO LADO

O Ipesq foi procurado pela reportagem e, por meio de mensagem eletrônica, respondeu que a médica Adriana Melo “não deve se pronunciar sobre o tema que está a cargo de vários pesquisadores de instituições parceiras”.

Amilcar Tanuri, da UFRJ, se limitou a dizer que está viajando e que retorna ao país no final de semana. Rodrigo Brindeiro não respondeu aos contatos da reportagem.

CAMINHO INCOMPLETO

Busca
Os cientistas têm buscado outros fatores que ajudariam a explicar melhor (com o auxílio do conhecimento já adquirido sobre o vírus da zika) as más-formações em fetos

Técnica
Usando uma técnica poderosa de sequenciamento genético, cientistas detectaram traços do VDVB em tecidos de fetos abortados e recém- nascidos que morreram

Problema
A técnica encontrou traços do material genético do vírus, mas outras técnicas não apontaram na mesma direção, fragilizando a hipótese inicial

Implicações
Por ser um vírus ligado à produção bovina, a mera especulação de ligação dele com más-formações seria capaz de afetar a indústria de leite e carne

Gabriel Alves de São Paulo

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