Em setembro 1997, oito dezenas de mulheres, incluindo uma longa lista de celebridades, contavam a VEJA como e por que fizeram aborto
(Veja, 20/09/2016 – acesse no site de origem)
Em setembro de 1997, reportagem de capa de VEJA trazia o corajoso depoimento de dezenas de mulheres de três gerações que aceitaram romper o silêncio e contar como e por que fizeram aborto. “Falaram atrizes, cantoras, intelectuais — mas também operárias, domésticas, donas de casa. Falaram de angústia, de culpa, de dor e de solidão. Também falaram de clínicas mal equipadas, de médicos sem escrúpulos, de enfermeiras sem preparo, de maridos e namorados ausentes”, dizia a reportagem. “A maioria delas não fez aborto pelos motivos previstos em lei, mas porque, cada uma em seu momento, cada uma com sua história pessoal, considerou as circunstâncias e concluiu que interromper a gravidez era uma saída menos dolorosa do que ter um filho que não poderia criar.”
Cássia Kiss, Maria Adelaide Amaral, Elba Ramalho, Ruth Escobar, Marília Gabriela, Tata Amaral, Aracy Balabanian e Zezé Polessa foram algumas das muitas celebridades que confiaram suas histórias à reportagem de VEJA. Um dos depoimentos mais pungentes foi dado pela apresentadora Hebe Camargo: “Eu tinha 18 anos e um corpinho lindo, sobrancelhas grandes, cabelos compridos e escuros. Começava minha carreira de cantora no rádio. Na minha primeira relação sexual fiquei grávida. Não podia contar para ninguém. Meus pais sempre foram muito severos e naquela época era uma perversão ter relação sexual sem se casar. Contei para uma amiga, uma vizinha. Ela soube de um local onde uma mulher fazia aborto. Ela não era médica. Numa sala pequena, sem anestesia, sem medicamento nenhum, fez a curetagem. A dor era tão intensa que ameacei gritar. Jamais vou esquecer-me daquela voz falando em tom alto e áspero para eu calar a boca”.
A reportagem observava que “um número cada vez maior de mulheres, juízes e médicos procura e encontra brechas cada dia mais amplas para realizar abortos com amparo legal, em hospitais públicos, com condições de higiene e saúde que em nada lembram aquelas clínicas de má fama e tantos traumas do passado”. Era o caso da biomédica Desirèe Zanelato, que era contra o aborto, até descobrir que teria um filho muito doente: “Os exames de ultra-sonografia mostraram que o feto tinha síndrome de Turner, disfunção cromossômica que lhe garantiria sobrevida de apenas alguns dias. Quando soube, minha primeira reação foi tê-lo assim mesmo. Durante duas semanas minha vida virou do avesso. A certa altura vi que, para protegê-lo, estava sendo egoísta. Não havia motivo para prolongar o sofrimento daquele feto. Fiz o aborto com autorização judicial. A sensação de estar fazendo um aborto dentro da lei muda tudo. Mesmo arrasada, senti-me amparada, protegida”.
O Código Penal brasileiro, de 1940, pune tanto a gestante que se submete à interrupção da gravidez (detenção de um a três anos) quanto quem a pratica (reclusão de um a quatro anos), salvo os casos de ‘aborto necessário’ (para salvar a vida da gestante) e quando a gravidez resulta de estupro. Expressamente, portanto, a legislação não ampara casos de má-formação. No entanto, relatava a reportagem, havia quem considerasse que, ao autorizar o aborto em caso de estupro, os legisladores cuidavam então da saúde mental da mãe: “Ora, raciocinam, os casos de anomalia fetal não foram incluídos no Código porque em 1940, quando foi elaborado, não havia tecnologia suficiente para identificar doenças em fetos”. “Por analogia, consideramos que casos de anomalia fetal são graves ameaças à saúde mental das mães. Portanto, concedemos os alvarás”, explicava o juiz corregedor Francisco José Galvão Bruno, pai de dois filhos, 46 anos e católico praticante. “Cheguei à conclusão de que minhas convicções pessoais e religiosas devem ficar em segundo plano quando estou no papel de juiz. Quando estamos decidindo, a lei é a nossa religião. Isso é o bastante para nossa consciência. O fato é que não podemos comprometer a saúde mental de mães que estão passando por uma situação terrível.”
Sem que o Congresso enfrentasse o tema, um caso particular de anomalia fetal, talvez o mais severo, foi parar na mais alta corte da Justiça: anencefalia. Em 2012, os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram por 8 a 2 autorizar o aborto nesses casos, por entender que um feto anencéfalo é um natimorto. VEJA aplaudiu: “A decisão é um magnífico avanço”. E anteviu que os princípios invocados no curso do processo poderiam ser usados na defesa do aborto por qualquer outro motivo: “Abre-se, agora, uma nova avenida de embates”.
De fato, quatro anos depois, chega ao Supremo ação em defesa da liberação do aborto em caso de infecção pelo vírus zika, associada à microcefalia. O caso é ainda mais controverso que o de anencefalia, uma vez que microcefalia não leva necessariamente à morte da criança. Foi o que alegou a Advocacia-Geral da União (à época comandada por Fábio Medina Osório, mais tarde demitido), ao defender a proibição do aborto: “Diversamente dos precedentes ora invocados, não se verifica a inviabilidade do embrião ou do feto cuja mãe tenha sido infectada pelo zika, mas a possibilidade de danos neurológicos e impedimentos corporais”. Já a Procuradoria-Geral da República se manifestou favoravelmente à liberação, dizendo que “a continuidade forçada de gestação em que há certeza de infecção representa risco certo à saúde psíquica da mulher”. O processo ainda não tem data para ser julgado, mas deve ser um dos muitos temas espinhosos que a corte enfrentará sob a nova presidência de Cármen Lúcia.