Ginecologista Sincera

04 de outubro, 2016

Elas mandam a real sobre sexo, pílula, aborto, menopausa, machismo, maternidade, pornografia e o papel social da mulher

(Revista Trip, 04/10/2016 – acesse no site de origem)

Encontrar um ginecologista realmente disposto a discutir nossas queixas não é fácil, até porque as grandes questões da sexualidade feminina costumam ser — com trocadilho pra car*lho — mais cabeludas do que aquilo que um ultrassom transvaginal ou um Papanicolau podem detectar. Talvez seja essa a explicação mais simples para o sucesso da página Ginecologista Sincera, que ultrapassou os 100 mil fãs no Facebook. É um espaço amigável para falar e ouvir sobre tudo, pulando a parte do constrangimento e do tempo cronometrado dos consultórios, mesmo que a verdade venha sem lubrificante.

Leia mais: Sífilis entre gestantes triplica em cinco anos (O Estado de S. Paulo, 07/10/2016)

Por trás do avatar genérico de médica sem rosto estão JS, TS e BW, ginecologistas catarineneses que têm, respectivamente, 35, 31 e 29 anos. As duas primeiras são mães e casadas, enquanto BW é divorciada e não tem filhos. Em comum, além do “saldo negativo no banco”, elas têm boa vontade e rebolado o suficiente para abordar temas negligenciados em exames de rotina com toda a graça que exigem as pequenas tragédias de ser mulher.

O trio prefere não se identificar porque “a ideia do Ginecologista Sincera não é fazer publicidade, mas difundir informação”. Na página, as leitoras podem se manter em anonimato também e muitas discussões são feitas, inclusive, entre perfis fakes. “Não dá para achar que uma consulta sincerona faria sucesso com qualquer paciente. Seria impossível ser agressiva assim no consultório, ou você pensa que nenhuma paciente sai ofendida do consultório quando a gente pergunta se ela e o namorado fizeram exame de HIV?”, dizem.

Conversamos com as Ginecologistas Sinceras durante três semanas sobre tudo o que não se ouve em uma consulta. Doeu? Doeu, mas foi uma dorzinha boa.

O que toda mulher deveria saber sobre a própria saúde?

De tudo o que vimos ao longo desses anos em consultório, o que mais pode ajudar é a frase “não sou obrigada”. A gente é cobrada para ter o rendimento de 100 soldados, sem nunca reclamar. Tem que ser eficiente no trabalho dentro e fora de casa, cuidar da casa, do marido, dos filhos, do cachorro, da mãe doente e do sogro bêbado (baseado em fatos reais). Deixar de fazer o que gosta para estar sempre disponível porque tem que “segurar seu homem” ou porque é feio ser egoísta? Espera aí! Tem que se desobrigar um pouco, entender que antes de ser filha, mãe, esposa, profissional ou amiga, a mulher é um indivíduo, um ser humano único e especial. Como tal, tem direito a lazer, descanso, prazer.

Outra coisa é que a gente, durante a formação em ginecologia, não recebe nenhuma noção sobre feminismo. É como se um pediatra não soubesse nada sobre desenvolvimento físico e cognitivo de uma criança. O pediatra sabe os desdobramentos na vida de um bebê que cresce em um ambiente hostil ou sem estímulos, então como é que um gineco desconhece o fato de que sobrecarga, estresse e violência interferem na saúde de uma mulher? É um acinte.

Pílula: remédio ou veneno?

Como qualquer tratamento hormonal, é remédio em alguns casos, mas não deveria ser prescrita à rodo, o que infelizmente acontece. Pílula tem efeitos colaterais, mas por vários motivos (precariedade, pressa ou despreparo), muitos médicos se acomodam respondendo a qualquer demanda com pílula. Acne? Anticoncepcional! Excesso de pelos? Anticoncepcional! Perda da libido? Troca de anticoncepcional…

Na página, a gente vê um monte de mulheres peregrinando atrás de ginecologistas que não recomendem pílula como solução para tudo. Outras preferem tomar e tudo bem, essas não costumam encontrar dificuldades. Mas mesmo elas só podem falar em “escolha” quando devidamente orientadas quanto a outros métodos contraceptivos, como o DIU por exemplo.

Se o médico não discute opções à pílula, vale perguntar o que ele receitaria caso estivesse atendendo, por exemplo, um homem com acne. Existem muitas alternativas contraceptivas mais saudáveis, desde métodos pouco seguros (coito interrompido em pacientes jovens, controle de fertilidade com pouco rigor), geralmente seguros (método hormonal bem usado, camisinha usada de forma correta, diafragma), bem seguros (DIU, SIU, pílula tomada de forma impecável, laqueadura, vasectomia) ou praticamente infalíveis (dois ou mais métodos associados). O problema é não ver problema em arriscar a saúde e a libido quando dá para fazer diferente.

Seria bom que as mulheres notassem que ser cíclica não é uma deficiência, mas uma característica que as diferencia dos homens. Elas podem ter dias de mais expansão, outros de mais recolhimento e isso faz com que sejam mais adaptáveis e flexíveis. É tipo um superpoder, não é errado. Errado é esse mundo insano em que vivemos, que força nossa natureza acima do limite do saudável.

Camisinha

O que mais aparece no consultório é mulher se arrombando pra usar anticoncepcional e se recusando a usar camisinha como se fosse uma restrição dela. JS só deu notícia de HIV para mulheres comprometidas e essa estatística aumenta a cada ano.

O argumento de chupar papel com bala é furado. Se fizessem um experimento com mulheres vendadas, bem lubrificadas, com camisinha de tamanho adequado para o pênis e bem colocada, a maioria teria dificuldade para saber se estava com ou sem proteção.

O que a maioria das pacientes faz é usar pílula — minando libido e retardando a excitação — para o parceiro não precisar colocar camisinha, coisa mais fácil do que tirar as roupas todas. Sem preservativo, além da exposição dos dois a DSTs, o próprio sexo perde. O homem goza mais rápido e pode continuar acreditando que qualquer ereção meia bomba já serve pra transar.

Aliás, a maior vantagem da camisinha é provavelmente a “seleção natural”: só rola sexo com vontade, dá tempo de a mulher também chegar lá. E se ele prefere que ela use pílula mesmo correndo riscos, será mesmo que esse tipão aí vai cuidar dela caso fique doente? Passaria noites em claro cuidando de um bebê não planejado?

A escolha tem que vir da mulher também, levando em conta o prazer e segurança dela, não se sacrificando pra satisfazer o outro. A camisinha é relativamente barata, de fácil acesso e uso. Se o relacionamento terminar por causa disso, você perde um parceiro egoísta e fica livre pra conhecer alguém bacana que se importe contigo, olha que legal.

TPM

Tão importante quanto falar sobre o que é TPM (Tensão Pré-Menstrual) ou TDPM (Transtorno disfórico pré-menstrual) é falar sobre o que não é nada disso. As pessoas costumam atribuir um monte de comportamentos que são apenas parte da nossa natureza a essas síndromes — e muitas mulheres perdem essa percepção ao longo de anos manipulando os ciclos artificialmente.

Muita gente fala como se os hormônios femininos fossem capazes de causar algum transtorno psiquiátrico temporário que nos impede de raciocinar com clareza, mas o que acontece de verdade é que, durante cada mês, oscilamos entre menor ou maior disposição física e emocional. Isso não é ruim de jeito nenhum. 

É inegável que algumas de nós sofremos excessivamente com sintomas pré-menstruais, mas treinar a observação do próprio corpo para conviver com o ciclo é quase sempre possível. Comer melhor, dormir mais, se masturbar, fazer atividade física e tudo isso de sempre são coisas fundamentais para evitar o mal estar.

Instalar um desses aplicativos para entender em que fase do mês você está vale a pena. Se nada disso der certo, ainda se pode consultar naturopatas, nutricionistas, enfermeiras, nutrólogos, ortomoleculares ou endocrinologistas que entendam do assunto e tenham empatia. É importante tentar.

Pílula do dia seguinte

Não faz bem para a saúde da mulher por causa dos hormônios, isso é claro. Não é algo para usar como se não fosse nada, mas conhecendo o comportamento sexual dos casais e o número de mulheres que sofrem violência sexual, retirar a pílula do dia seguinte do mercado é uma arbitrariedade.

Ela não é um método abortivo: serve como anticoncepção na tentativa de retardar a ovulação, para que ela não aconteça quando os espermatozóides estão viáveis (cerca de 72 horas dentro do corpo feminino). Se a ovulação já tiver acontecido, não tem função.

Mitos sobre aborto


Os abortos espontâneos ou provocados por si só não causam infertilidade, independentemente da quantidade de vezes em que ocorram. O problema surge, em geral, por conta de infecção uterina após o procedimento, que pode gerar cicatrizes no útero e tubas uterinas (Síndrome de Asherman) ou, em casos mais graves, levar à retirada do órgão (cirurgia de histerectomia). Outro momento delicado é o da curetagem, cirurgia onde “raspamos” ou “aspiramos” o interior do útero, que precisa ser feita tanto em caso de aborto espontâneo quanto no induzido se ele não é completo, ou seja, quando parte da gestação não foi eliminada com o sangramento e o útero retém resíduos da gravidez.

Como médicas, somos a favor da legalização do procedimento, porque é uma questão séria de saúde pública. Estamos em uma sociedade desigual, então as mulheres que podem, geralmente brancas de classes A e B, vão até clínicas de “qualidade” e fazem seus abortos com toda a segurança, enquanto as mulheres pobres, as negras, as marginalizadas morrem tentando abortar com agulhas de crochê e até mesmo por meios de choques elétricos no útero em ambientes extra-hospitalares imundos. A gente vê isso acontecer MESMO!

Gostamos da frase: “Se você não é a favor do aborto, não aborte!”, porque a maioria das pessoas que se dizem pró-vida são, na verdade, pró-vida do feto. Se uma mulher (uma vida!) morrer durante o procedimento mal feito, é “bem feito para ela! Assassina!”. No mais, sabemos que depois de nascer, essa criança e torna invisível e vira um “problema” social.

Pornografia

“Se eu fizer sexo com agressividade com uma menina virgem, será que pode danificar algo?” Um belo dia, acordamos com essa pergunta na caixa de mensagens da página, feita por um rapaz bem jovem, provavelmente com facílimo acesso à pornografia via internet. Ali, a penetração é o único foco, alternando com a cara de dor e falsos gemidos de uma mulher que foi paga pra se submeter àquilo sem ter o próprio prazer contemplado.

Sugerimos, então, que ele fizesse um teste nele mesmo. Caso nunca tivesse feito sexo anal, que pegasse um frasco de shampoo e alternasse colocar e tirar do reto “com agressividade”, para depois formar a própria opinião sobre “danificar algo”. Porque não saber dar prazer já é muito errado, mas se preocupar apenas em não “danificar algo” enquanto trata a vagina da mulher como um objeto que pegou emprestado e tem que devolver sem quebrar é intolerável.

Nem todo mundo sabe, mas vaginas rasgam. Uma colega já atendeu uma menina de 14 anos cuja vagina rasgou na primeira relação. O pênis passou com força e foi direto pra cavidade abdominal. A garota chegou no hospital em franca hemorragia. Quando acordou da cirurgia (tiveram que abrir a barriga pra costurar), ao ser perguntada sobre o que aconteceu, disse “não sei… Só me lembro da hora em que ele me pegou pelos ‘ombrinhos’…”.

Ah, nos certificamos, também, de que o lance sobre o xampú servisse apenas como uma analogia bem didática.

Feminismo


Algumas pessoas insistem em dizer que nós, assim como as feministas, odiamos os homens. Mas não, nós adoramos! A sociedade que os considera desprezíveis. Provar isso é facinho, quer ver?

Se o homem trai, o que a sociedade diz? Que ele é assim mesmo, homem não presta. Se some e deixa a mulher sozinha com o filho, o que a sociedade diz? Que ele é assim mesmo, covarde, nunca tá pronto, não amadurece antes dos 50. Se ele chega passando a mão no meio das pernas da mulher, o que a sociedade diz? Homem é assim mesmo, só pensa em sexo e só pensa nele. Se o cara fica sentado que nem o Buda com o celular na mão enquanto a mulher cuida da casa e dos filhos sozinha, o que a sociedade diz? Que homem não sabe fazer nada direito.

As feministas, não. Não achamos que o pênis torna o homem um canalha, imaturo, covarde, egoísta, ruim de cama, preguiçoso e relaxado. Achamos que a sociedade os molda assim justamente quando só espera isso deles. Achamos que os homens podem — e devem — ter honra, caráter, compromisso e responsabilidade pelos seus atos como qualquer adulto em qualquer outra circunstância. Nunca vi ninguém nem negar e muito menos deixar de cobrar empréstimo para um homem porque “ah, eles não amadurecem nunca, não têm juízo nem responsabilidade!!”, então porque fazem isso quando uma vida é creditada a eles?

Assim como é ridículo um adulto saudável e pleno das suas capacidades depender de outro pra comer, se vestir e viver num lugar limpo, é inadmissível que ele dependa de mulher até pra reafirmar sua masculinidade através do sexo, seja por pornografia, prostituição, assédio, estupro. Mulher não precisa de homem pra se sentir mulher, porque que homem não aprende também a fazer isso sozinho? Nós acreditamos em vocês. Que vocês podem ser melhores. Que a mediocridade não faz parte da essência do homem.

Maternidade


Não existe instinto maternal. Existe, sim, o instinto de reprodução, mas não necessariamente o instinto de maternidade, que é uma convenção social bem típica do ocidente. Em sociedades matriarcais ou tribos indígenas, a criança é geralmente responsabilidade do grupo: a criação é coletiva e não existe essa sobrecarga em uma única mulher. Uma mãe precisa saber que o amor não necessariamente é imediato, o apego tampouco.

Uma vez uma paciente sussurrou no consultório para perguntar se era normal não conversar com o bebê após 16 semanas de gravidez. Mas é claro que é normal! Você ainda nem sente o bebê se mexendo. Esse amor é construído aos poucos, é um processo, e cada pessoa tem seu tempo. Outra coisa é que nem toda mãe será feliz com a maternidade. Quando a gente digita no Google “odeio ser”, quase sempre ele sugere completar a frase com “gorda”,”magra” “pobre” ou “mãe”.

Existe um véu de sofrimento nos primeiros meses por conta da privação de sono, do corpo voltando ao normal, do estranhamento em relação àquele ser vivo cheio de necessidades que dispõe de uma comunicação muito primitiva. Em um mundo tão cheio de pressões por excelência, nem todo mundo vai se adaptar a essa maternidade brutal e cheia de exigências. Isso não tem nada a ver com ser má ou necessariamente estar sofrendo de depressão pós-parto. Aceitar que é normal não amar enlouquecidamente um filho desde o teste de gravidez ou no primeiro minuto do nascimento até ajuda a construir uma maternidade mais saudável e consciente.

Menopausa

Envelhecer no país da cirurgia plástica e das musas perfeitas expostas nos meios de comunicação é muito desafiante. Tem que ser uma pessoa muito segura de si para avançar com boa saúde mental. Algumas mulheres se f*dem pra caramba na menopausa, enfrentam ondas de calor e mal-estar intoleráveis porque boa parte dos ginecologistas não passa reposição hormonal, já que não querem perder um tempão na consulta explicando os riscos e benefícios. Outros se restringem a dizer que a reposição pode causar câncer e acabam ouvindo “ué, então não quero”. O risco existe, mas há casos em que ele não é pior do que levar uma vida miserável por causa da menopausa.

Todo mês, recebemos mulheres reclamando de ainda estarem menstruando, tipo: “Poxa! Até quando eu vou menstruar? Que coisa chata, não tem um remédio para fazer a menopausa não?”. Aí, começamos esclarecendo que a menopausa é a transição entre a vida adulta e a senilidade, trazendo consigo os perigos da falta do estrogênio endógeno (hormônio feminino natural, produzido pelo nosso corpo). Isso acompanha o aumento do risco de doenças cardiovasculares e da osteoporose. A menopausa é um momento da vida que tem sua importância como todos, faz parte.

Se compararmos o organismo feminino com o masculino — que produz estrogênio em baixíssima quantidade —, vemos que eles não têm esse privilégio “cardio-protetor”. É por isso que o risco maior de infarto de um homem começa por volta dos 40 anos, enquanto o da mulher começa a aumentar depois dos 50. Temos uma expectativa de vida maior porque cuidamos melhor da saúde, não nos expomos tanto à violência e temos mais estrogênio circulante, o que é excelente.

Sete MITOS ouvidos no consultório

  • Orgasmo vaginal não existe. Orgasmos femininos são sempre clitoridianos;
  • Mulher sem filhos pode, sim, colocar DIU;
  • Vagina larga é um conceito errado. O que pode rolar é vagina flácida, e ela pode se fortalecer com exercícios como qualquer outro músculo do corpo. É por isso que o parto normal não deforma a vagina;
  • Existem várias alternativas diferentes de anticoncepcionais para tratar a síndrome dos ovários policísticos. As principais envolvem cuidados com a alimentação e prática de atividades físicas;
  • Quem toma anticoncepcional não tem ciclo menstrual. Assim, tanto faz sangrar ou não. A escolha é da paciente;
  • Ultrassom não é suficiente para diagnosticar a síndrome dos ovários policísticos.
  • Analisar o histórico da paciente e cruzar uma série de dados dos exames físicos é obrigatório antes de bater o martelo;
  • Não se pega HIV, Hepatite, HPV, Clamídia, Sífilis ou Gonorréia sentando na privada, muito menos no ônibus ou compartilhando calça jeans. Em banheiros públicos, o assento deve estar seco e, preferencialmente, forrado com papel. Isso basta. Mas se preferir fazer o “aéreo”, por gentileza, levante o assento. Obrigada.

Luiza Sahd

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