Gravidez na adolescência é sintoma de uma sociedade que precisa de muitos ajustes, por Viviana Santiago

17 de fevereiro, 2020

Ao limitar o acesso de meninas e meninos a informações sobre sua sexualidade, faz-se a opção de não possibilitar que desenvolvam competências necessárias para vivê-la de forma responsável

(Celina/Globo.com, 17/02/2020 – acesse no site de origem)

A gravidez na adolescência tem sido notícia nas últimas semanas, mobilizando mídia, opinião pública e provocando intensos debates: sob a égide de pensar a prevenção, travam-se polêmicas que não nos permitem aprofundar aspectos intrínsecos a esse fenômeno e que, se e quando ignorados, atuam para a sua manutenção e reprodução. Que tal refletirmos sobre a gravidez pensando na vida das meninas? Por que não investir numa discussão que inclua meninos?

Falar de gravidez é pensar na vida de meninas e meninos, nas informações que recebem sobre seus corpos. É refletir que há palavras pouco faladas, proibidas. Sexualidade é uma delas. Adultos que tiveram desafios para viver sua sexualidade seguem com essa dificuldade. Quando isso não é elaborado, se manifesta em censura ao pensar a sexualidade dos jovens.

O debate atual dá a impressão de que se fala de sexualidade quando se quer dizer sexo. Está tudo junto, misturado, mas não é a mesma coisa! Como diz a escritora e mestra em educação sexual Caroline Arcari, a sexualidade “não está conectada somente aos órgãos genitais tampouco à relação sexual, mas compreende uma série de processos psicológicos, físicos e sociais de sensações, sentimentos, trocas afetivas, necessidade de carinho e contato e necessidade de aceitação”.

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Ao limitar o acesso de meninas e meninos a informações sobre sexualidade, faz-se a opção deliberada de não possibilitar que desenvolvam competências necessárias para vivê-la de forma responsável, sabendo aferir e evitar riscos e sem reproduzir padrões de submissão e violência. Seguimos em um processo incoerente e contraditório de não falar sobre sexualidade, mas hiper estimular meninos a ter sua primeira relação sexual o quanto antes para confirmar sua masculinidade, num processo de objetificação de corpos e vidas de meninas. Às meninas, ensinamos a não fazer, que é errado, num misto de desejo, medo, pudor. “Desempoderamos” completamente sua presença nos namoros. Isso reproduz na adolescência padrões de violência da vida adulta: meninas são testadas por namorados a transar sem camisinha como prova de fidelidade ou têm medo de propor o preservativo e serem estereotipadas.

Precisamos produzir e disseminar informações para que os jovens conheçam a si mesmos e aos outros preservando padrões de dignidade. Devemos reconhecer as especificidades da adolescência e adotar abordagens compatíveis com as vivências de uma fase de construção e desenvolvimento. Devemos nos preocupar como adolescentes, especialmente as meninas, são recebidas em unidades de saúde — a censura não educa, não aproxima. Por que não construímos mais serviços de saúde amigáveis a jovens?

Se não atuarmos no fortalecimento de políticas públicas para que adolescentes acessem seus direitos, deixaremos de lado as meninas que dizem que engravidaram porque queriam. Elas queriam porque não havia escolhas possíveis: dificuldade para estudar, violência doméstica e intrafamiliar, pobreza, falta de perspectiva de emprego — nesse cenário, ter um bebê é a melhor possibilidade. Muitas queriam apenas ser respeitadas. Numa sociedade adultocêntrica que produz um conteúdo tão perverso sobre a adolescência, ser menina e respeitada é poder viver a vida de uma mulher adulta. Por isso, a gravidez na adolescência está fortemente atrelada ao casamento infantil, como causa ou consequência imediata.

A gravidez na adolescência é um sintoma de uma sociedade que precisa fazer muitos ajustes e correções. Poderíamos enxergar não só a gravidez, mas a vida de meninas, meninos, famílias e comunidades que vivem essa situação. Pensar como o Estado deve garantir direitos, que propiciam desenvolvimento de potencialidades e asseguram que cada menina possa aprender, decidir, liderar e progredir e ser reconhecida em sua potência de menina, vivendo e construindo um mundo mais justo com meninos que não reproduzem uma masculinidade hegemônica. Um mundo em que adultos reconhecem os direitos de crianças e adolescentes e permitem que cada menina brasileira em vez de dizer “quero ter um bebê” possa dizer “posso ser o que eu quiser”.

Viviana Santiago, gerente de gênero e incidência política da Plan International Brasil

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