Hora da Lei Jandira, por Flávia Oliveira

17 de setembro, 2014

(O Globo, 17/09/2014) No Brasil, é comum que vítimas de crimes de comoção pública emprestem seus nomes à legislação relacionada aos ilícitos. Foi assim que Maria da Penha Maia Fernandes, após 23 anos de agressões e duas tentativas de homicídio pelo então marido, acabou batizando a Lei 11.340/2006, que trata da violência doméstica. A Lei 12.737/2012, sobre delitos de informática, ficou conhecida como Carolina Dieckmann, atriz que teve fotos íntimas roubadas do computador e distribuídas na internet. Recentemente, o assassinato bárbaro de Bernardo Uglione Boldrini, de 11 anos, levou o Congresso a homenageá-lo com a Lei 13.010/2014, que dá a crianças e adolescentes o direito de serem criados sem castigos físicos ou tratamento cruel. O pai e a madrasta do garoto respondem pela morte. Agora, as investigações sobre o desaparecimento de uma jovem carioca que faria um aborto clandestino sugerem ser hora da Lei Jandira.

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JANDIRA MAGDALENA dos Santos Cruz, de 27 anos, saiu de casa, em Campo Grande, Zona Oeste do Rio, em fins de agosto, para se submeter a um aborto. Mãe de duas filhas, decidira interromper uma gravidez indesejada, de um relacionamento ocasional. O ex-marido a deixou num terminal de ônibus, onde ela embarcou num carro com placa adulterada e destino incerto. Nunca mais deu notícias. A polícia do Rio já prendeu quatro suspeitos, que integrariam uma quadrilha especializada em abortos clandestinos.

O drama de Jandira, surgido em pleno período eleitoral, poderia ajudar o Brasil a debater com seriedade o aborto. É tema de saúde pública, repetidamente tratado como assunto moral, religioso. Ainda ontem, oito candidatos a presidente participaram de debate promovido pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no Santuário de Aparecida (SP). Antes do encontro, o presidente da CNBB, dom Raymundo Damasceno Assis, já indicava, em entrevista ao GLOBO, o viés da discussão: “A vida também é importante. É o primeiro direito da pessoa, sobre o qual se fundam os outros direitos. Então, qual a opinião do candidato com relação à vida? A vida é importante para ele desde o seu começo até seu término natural?”

A propaganda eleitoral está igualmente pontuada de candidatos com posições contrárias ao aborto, sob a alegação de defesa da vida e da família. Transformam o assunto num Fla-Flu inútil. A delicada decisão de interromper uma gravidez não se resume a sim ou não, contra ou a favor. É mais complexa.

A legislação brasileira permite a interrupção da gestação por risco à vida da gestante, estupro ou feto anencéfalo. Mas a dificuldade de atendimento pela rede pública atrapalha até os procedimentos previstos na lei. Em maio, uma portaria do Ministério da Saúde que listava o protocolo para a rede SUS no aborto legal foi engavetada, por pressão de bancadas religiosas.

Assim, as brasileiras, cobertas ou não pela lei, são empurradas para redes subterrâneas, que a elas negam companhia, endereço fixo, instalações equipadas, equipes e procedimentos adequados. Jandira decidiu pelo aborto e a mãe, religiosa, foi contra. A falta de apoio não a demoveu. Centenas de milhares de brasileiras fazem o mesmo, diariamente. Muitas, como Jandira, não voltam para casa; outras retornam mutiladas, doentes.

É esse o resultado das posições estreitas, maniqueístas. Subordinado a convicções religiosas e dissociado da realidade nacional, o debate sobre direitos sexuais e reprodutivos põe em risco a mulher brasileira. De quebra, aproxima os conservadores de redes criminosas responsáveis por esterilizações, mortes maternas e prejuízos ao sistema de saúde.

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