Na pequena cidade onde Juliana mora, o julgamento mais difícil de enfrentar é o dos vizinhos, colegas de trabalho e pais dos colegas dos filhos.
(BBC News Brasil, 08/06/2018 – acesse no site de origem)
A notícia de que a jovem teria feito um aborto se espalhou rapidamente depois que ela passou a responder a um processo penal por interromper a gravidez, no início deste ano.
“A gente é julgada por milhares de pessoas. Às vezes, a gente em si consegue lidar com o problema, só que muitas vezes é transferido para os familiares. Eles têm sofrido muito, meus filhos”, disse ela, em entrevista à BBC Brasil.
“Assim como eu, eles são pré-julgados, condenados, crucificados, como se a população pudesse fazer justiça com as próprias mãos.”
Esta reportagem faz parte de uma série de matérias produzidas pela BBC Brasil sobre aborto clandestino. A reportagem da BBC Brasil conseguiu acesso a um grupo secreto de WhatsApp que vende pílulas abortivas e dá o passo-a-passo do procedimento por vídeo, texto e áudio.
Leia a reportagem completa aqui: Exclusivo: Por dentro de uma ‘clínica secreta’ de aborto no WhatsApp
O aborto no Brasil só é permitido nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e feto com anencefalia (por decisão do Supremo Tribunal Federal). A pena para uma grávida que provoca a interrupção da gravidez é de até três anos de prisão.
Juliana estava recém-separada e namorava um rapaz, quando descobriu que estava grávida do terceiro filho. Ela diz que não tinha condições econômicas e psicológicas para ter mais uma criança.
“Eu sabia como que era a vida de ter filhos, a responsabilidade de ter dois filhos, a responsabilidade que sempre sobra para a mãe. Fica doente, é a mãe que tem que cuidar. Não pode faltar muito tempo do serviço, senão o emprego já desconta. E eu sabia que não queria ter uma terceira criança.”
Depois de tentar soluções caseiras, como chás, ela conseguiu comprar um remédio abortivo. Com medo da reação dos familiares e amigos, Juliana tomou as pílulas sozinha em casa. Não contou para ninguém.
Mas começou a sentir dores fortes como efeito do medicamento, que provoca contrações do útero a ponto de expelir o feto. Assustada, decidiu buscar ajuda na emergência de um hospital público.
“O primeiro médico que me atendeu me ajudou. As medicações ainda estavam em mim. Ele tirou, enrolou na luva, jogou fora. Falou que ia tratar como aborto instantâneo e que estava ali para me ajudar e não julgar”, contou.
Mas o plantão desse médico terminou enquanto Juliana ainda estava em processo de aborto, ainda sob o efeito da medicação.
“Ele indo embora, as dores aumentaram. O processo de expulsão do feto começou e aconteceu que expulsou (o feto), saiu”, conta. A enfermeira que acompanhou o primeiro atendimento contou do aborto à médica que assumiu o plantão, que decidiu chamar a polícia.
Os policiais foram imediatamente ao hospital e interrogaram Juliana quando ela ainda sangrava. “Assim que eu tinha acabado de ter o feto, eu tive uma convulsão. Eles (policiais) entraram na sala falando que era para eu confessar, senão eu ficaria algemada, que eu iria para um presídio”, relatou.
Pressionada, Juliana acabou confessando ter tomado os remédios abortivos. “Foi aonde eu fui falando e dei o nome do rapaz que me vendeu. Foi autuado o crime em flagrante.”
Para não ser presa, ela teve que pagar uma fiança. O homem que vendeu os medicamentos passou a ameaçá-la e a notícia do aborto se espalhou pela cidade.
“Depois de tudo isso, eu recebi ameaças do rapaz que vendeu a medicação, recebi chantagens de familiares. Os médicos da minha cidade sabem o que aconteceu e não me tratam tão bem”, conta.
Sem recursos para pagar um advogado, Juliana está sendo representada na Justiça pela Defensoria Pública de São Paulo. No mês passado, um pedido para arquivar o processo foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. A Defensoria disse que vai recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Mas, independentemente da decisão judicial, Juliana diz que já se sente “julgada” e “condenada” pela sociedade.
“Muita gente que me olha torto, algumas lembram do fato, me tratam mal. Eu tenho medo de ser condenada por um crime que eu não fiz. Porque eu acho que é o meu corpo. Eu tenho direito sobre o meu corpo”, afirma.
“É muita acusação e pouco amparo. A gente tenta operar e não pode (pelo SUS). A prevenção, tanto da camisinha quanto a pílula, é 99% seguro. Mas e aquele 1%? E quando acontece e você não quer?”, questiona.
Centenas de processos iguais ao da Juliana
A história de Juliana não é um fato isolado. Centenas de processos contra mulheres acusadas de abortar tramitam na Justiça de todos os Estados.
De acordo com um levantamento feito pelo Portal Catarinas nos tribunais de justiça em 2017, 18 Estados registraram 331 processos criminais pela prática de autoaborto – aborto provocado pela gestante ou com o consentimento delas.
Conforme a pesquisa, São Paulo é o Estado com o maior número de processos por aborto provocado pela gestante – foram 250 entre 2015 a 2017, um aumento de 25% no período.
A defensora Ana Rita Prata, coordenadora do Núcleo de Promoção dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo, disse à BBC Brasil que, em 70% dos casos, essas mulheres são denunciadas por um profissional de saúde após buscar ajuda nos hospitais.
Quando a denúncia não é feita pelo médico ou enfermeiro que atende na emergência, quem chama a polícia é um familiar ou vizinho, segundo a defensora.
“A prática acontece, todo mundo sabe, mas aquelas mulheres que chegam ao sistema de justiça é por uma denúncia de alguém da sua confiança ou de alguém que deveria cuidar e não julgar”, afirmou à BBC Brasil.
Segundo a defensora, denunciar pacientes após o atendimento viola a ética médica. Ela é autora de um pedido na justiça para anular 30 ações penais de mulheres denunciadas por profissionais de saúde. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) negou o pedido e a Defensoria de São Paulo disse que vai recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
“A denúncia viola o dever ético de sigilo de qualquer dos profissionais de saúde. Nesses casos que encontramos, foram médicos, enfermeiros e assistentes sociais. Os conselhos de classe dessas três profissões são enfáticos em dizer que é dever ético manter o sigilo, não só não revelando o fato, mas também não entregando documentos sigilosos.”
Nathalia Passarinho