“Legaliza! É pela vida das mulheres” foi o lema bradado ontem (28/09) durante a manifestação pela legalização do aborto no Rio de Janeiro. Organizado pela Frente Contra a Criminalização das Mulheres pela Legalização do Aborto e diversos movimentos sociais e entidades, o ato teve o objetivo de denunciar os projetos de leis que retiram os direitos das mulheres, como, por exemplo, o Estatuto do Nascituro, que privilegia os direitos do feto desde o momento da concepção e transforma o aborto em crime hediondo; e PEC 181/2015, que pode vetar o aborto em qualquer caso no país, inclusive nos já previstos por lei – em caso de estupro, anencefalia do feto ou gravidez com risco de morte para a mãe.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 1 milhão de mulheres brasileiras se submetem a abortos clandestinos anualmente e a cada dois dias uma mulher morre. Ainda de acordo com o órgão, quase metade dos abortos feitos no mundo entre 2010 e 2014 foram inseguros.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o índice de aborto provocado das mulheres pretas é de 3,5%, o dobro do percentual entre as brancas (1,7%). A psicóloga, militante feminista e do Fórum de Mulheres Negras, Luciene Lacerda, avalia que a mobilização das mulheres, especialmente as negras, é fundamental para pressionar por direitos. “Precisamos multiplicar esse debate pelos bairros e ampliar o número de mulheres negras nesse debate. Somos nós as maiores vítimas das mortes por abortos inseguros. No Brasil a proibição do aborto faz com que seja ‘eleita’ quem morre.
A doença Zika atinge muito mais as comunidades pobres, onde o Estado não garante o saneamento básico, e é onde há maior número de mulheres negras e pobres. E um debate que surgiu a partir de vários casos da síndrome da microcefalia foi o direito ao aborto para não levar a gravidez a termo. Não há uma escolha entre permanecer ou interromper com a gravidez e o Estado não dá perfeitas condições a essa mulher para manter criança sob os cuidados estritos do Estado. Ela não tem todas as necessidades garantidas para esse novo cenário”, disse Luciene Lacerda, que também lembrou sobre a recente aprovação do ensino religioso confessional no Supremo Tribunal Federal (STF). “Vivemos um momento de muito riscos no país. Vimos, recentemente, o STF decretar que o nosso país não tem Estado laico com a aprovação do ensino de apenas uma determinada religião nas escolas”, destacou.
Lésbicas, bissexuais e homens trans
Mulheres lésbicas, bissexuais e homens trans são pessoas diretamente atingidas pela criminalização do aborto. De acordo com a militante e integrante da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), Virgínia Figueiredo, “essas pessoas sofrem estupro corretivo e precisamos dar visibilidade a tais pautas e lutar pela legalização do aborto”. O estupro corretivo é uma prática violenta de ódio e extermínio das identidades de homens trans e mulheres lésbicas e bissexuais. Virgínia lembrou também dos apagamentos que as lésbicas sofrem na sociedade, até mesmo dentro do próprio movimento.
O estudante de fotografia e ativista da causa trans e transmasculinidade, Bernardo Gomes, de 34 anos, tem um filho de 14 anos. Entre um clique e outro em sua câmera fotográfica durante a manifestação, o ativista reivindicava o direito ao aborto aos homens trans. “Qualquer pessoa que tenha útero tem que ter direito a essa escolha. E como homem trans, negro e bissexual quero ter o direito de decidir sobre o meu corpo caso eu engravide do meu parceiro”, contou Bernardo. Morador do subúrbio do Rio de Janeiro, ele ainda declarou que “é preciso romper com essa lógica de que a maternidade é compulsória e também enfrentar um debate de que as pessoas que abortam clandestinamente são as brancas ricas. A população negra morre e ainda não tem acesso às políticas públicas de qualidade”.
Nesse sentido, a putativista, presidente do TransRevolução e idealizadora da CasaNem e do PreparaNem, Indianara Siqueira acredita que é preciso ter escuta e acolhimento a outros corpos. “Tivemos mulheres puxando um ato importante pela legalização do aborto, mas as manifestações devem também fazer escuta sobre outros corpos como homens trans e pessoas LGBT. Como ativistas temos que estar mais abertas a essa escuta”, declarou. Durante o trajeto, muitos homens demonstraram seus machismos e seu incômodos com a manifestação. “Quando os mais oprimidos estão tomando o poder à frente de algo, os opressores se sentirão incomodados, pois ainda tem ranço machista”, disse.
A massoterapeuta e militante Joana Santosu reforçou que a pauta do aborto, assim como a da legalização das drogas e da despatologização das identidades trans, são todas oriundas da mesma luta contra a sistemática e histórica retirada de direitos pela qual estamos passando. “O aborto no Brasil é uma questão de saúde pública. Estou aqui para lutar pelo útero livre e pela vida das mulheres”, comentou.
Doulas pela legalização
O direito ao aborto com acompanhamento de doulas foi destacado pela presidente da Associação de Doulas no Rio de Janeiro, Morgana Eneile Tavares de Almeida. “Há muitas pessoas que não sabem, mas, em muitos países, as doulas estão presentes no processo de abortamento. Mulher alguma precisa passar por isso sozinha como vergonha ou em processo de humilhação e, nós, doulas, lutamos para que possamos apoiar as mulheres nesse momento. Entendemos que gestar é uma opção e aborto é um direito”, disse. Ela ainda falou sobre a luta para que o serviço de aborto legal no Rio de Janeiro conte com apoio de doulas.
Luta no STF
Tramita no Supremo Tribunal Federal a Arguição de Violação a Preceitos Fundamentais (ADPF), nº 442, que propõe a descriminalização do aborto até 12 semanas para todas as mulheres. De acordo com a advogada, professora da UFRJ e uma das signatárias da ADPF, Luciana Boiteux, a ação é uma ferramenta de luta jurídica no STF para fazer valer direitos já previstos na Constituição, mas que não são efetivados para as mulheres: liberdade, autonomia, cidadania, dignidade humana, todos esses violados pela criminalização do aborto. “Queremos ampliar a luta feminista para o STF, ou seja, conectar os ministros com a realidade, especialmente das mulheres pobres e negras, que são as maiores vítimas de abortos inseguros. Nossos opositores se dizem defensores da ‘vida’, mas nós nos posicionamos, inclusive juridicamente, como defensoras das vidas das mulheres”, reivindicou.
Ainda segundo Luciana, mesmo diante da interdição do debate no Parlamento e das ameaças de retrocesso, há chance de avanço no STF. “Tivemos vitórias, como a ADPF 54, que ampliou as hipóteses de aborto legal o caso da anencefalia, e também da recente decisão da 1ª Turma do STF que considerou, num caso concreto, a inconstitucionalidade da criminalização do aborto até 12 semanas”, concluiu.
Arte como resistência
Do começo ao fim, a manifestação seguiu com músicas, performances, poesias e apresentações culturais. A programação contou com Slam das Minas do Rio de Janeiro [evento de poesia], Baque Mulher [grupo de maracatu nação], Mulheres Finadas, dentre outras atrações. De acordo com a poeta Letícia Brito, a arte é uma forma de resistência nos atos. “Na época da ditadura militar, a MPB conseguia denunciar pela arte, que é uma importante estratégia para revolucionar e também ampliar o diálogo com a sociedade. Muitas vezes, as falas são cansativas e uma poesia, uma música ou uma performance, por exemplo, podem tocar as pessoas”, finalizou.
Por Camila Marins, com revisão de Laura Ralola