(UnB Agência) Parece que a longa espera pelo julgamento da ação de anencefalia chegará ao fim no Supremo Tribunal Federal. Há oito anos tramita na suprema corte “a ação Severina”. Esse nome não é um apelo à história da miséria nordestina cantada pelos versos de João Cabral de Melo Neto, mas é o batismo encarnado em uma mulher agricultora e analfabeta, que divide sua vida entre as plantações de brócolis e o cuidado do filho, Walmir. Severina nunca havia pensado em visitar Brasília, mas está na capital do país para conhecer a corte que cruzou sua vida há oito anos em um hospital público de Recife. Fez sua primeira viagem de avião, acompanhada de Rosivaldo, seu marido.
Severina e a corte se conheceram em 20 de outubro de 2004. Severina saiu de Chã Grande convencida de que passaria uma noite na maternidade em Recife. Estava grávida de 14 semanas de um feto com anencefalia, uma má-formação incompatível com a sobrevida fora do útero. A imagem transparente da ecografia não lhe deixou dúvidas: o feto não tinha cérebro. Rosivaldo exibia a ecografia como uma prova do que os olhos não viam. E, segundo os versos de Mocinha de Passira, repentista que cantou a história de Severina, não se vive “sem a peça genuína”. Sem cérebro, não há vida, só uma sobrevida de minutos, horas ou dias.
Severina não foi atendida no hospital. A liminar que autorizava a interrupção da gravidez foi cancelada pela mesma corte que hoje conhecerá em Brasília. Nesses oito anos, Severina não entende bem as razões de tanta espera. Não está claro para os ministros do STF que o feto não irá sobreviver? Não basta conhecer sua dor pelo filme que leva o seu nome para entender que o sofrimento involuntário não dignifica as mulheres? Ela sabe que não falará aos ministros, só ouvirá as razões que já sentiu como uma sentença no passado. Severina deu à luz um feto natimorto que, sem nome e registro de nascimento, foi enterrado em uma cova que ainda hoje desconhece o repouso no cemitério. Mas parece que ainda há dúvidas, senão sobre o diagnóstico letal e irreversível da anencefalia, sobre as razões éticas que levariam as mulheres ao aborto em caso de anencefalia fetal.
Severina se recusa a ser comparada aos nazistas. A escolha severina não é resultado da perversão de um Estado totalitário que oprime e ignora a autonomia das mulheres. Não há eugenia em um regime de liberdade de escolha. Eugenia é uma peça de uma engrenagem de opressão, segregação e discriminação. Nenhum médico forçou Severina a antecipar o parto. O padre de sua paróquia, em vão, tentou demovê-la da decisão, mas Severina estava convencida do que sua dor pedia. A verdade é que ela não tem as vantagens de quem pode prescindir da legalidade, por isso exibe as mãos com que trabalha a terra para demonstrar sua submissão à ordem democrática. Sem o direito ao aborto, sua vida se resumiu a uma longa espera.
Severina não ignora que há outras severinas com pensamento diferente do seu. Há mulheres que desejam manter a gestação, dar à luz e esperar pela sobrevida do recém-nascido. Elas contam outro enredo sobre a gravidez de um feto com anencefalia e algumas exibem seus filhos em sobrevida para quem quiser conhecê-los. Severina sabe as histórias dessas mulheres e respeita suas escolhas. Ela, no entanto, não suportava viver a angústia da ausência do berço e da sombra do caixão pelo filho que não conheceria. A diferença entre ela e essas mulheres é que Severina não é missionária de uma causa, apenas a voz de uma experiência. Hoje, infelizmente, a voz de Severina não é ouvida pela lei penal, por isso seu lamento é solitário.
Severina respeita a vida das pessoas com deficiência. O corpo com impedimentos é uma expressão da rica diversidade humana. Ela não precisa conhecer a primeira convenção do século 21 sobre os direitos das pessoas com deficiência para entender que deficiência não é inviabilidade fetal. Uma pessoa com deficiência reclama seu direito a estar no mundo, mas seu filho natimorto não tinha vida a ser vivida. Por isso, Severina rejeita quem a acusa de assassina ou genocida de deficientes. A ela, junta-se a voz de milhares de pessoas com deficiência no Brasil que se sentem ultrajadas com essa vulgar acusação. Anencefalia não é deficiência — é uma má-formação fetal que a medicina considera irreversível, letal e incurável.
Não sei se há outras dúvidas sobre a ética das mulheres que desejam antecipar o parto em caso de anencefalia fetal. Se não é eugenia, não é homicídio, tampouco genocídio, a pergunta é: por que obrigar uma mulher a se manter grávida contra sua vontade? Minha hipótese é que não há resposta legítima, por isso a Suprema Corte terá a oportunidade de corrigir um erro histórico que ignora os direitos reprodutivos das mulheres. Não há como reparar a dor vivida por Severina, mas há como cuidar das severinas ainda por vir. A todas elas garantiremos que a dignidade das mulheres não se resume à maternidade compulsória.
Leia matéria em PDF: Uma escolha Severina, por Debora Diniz (UnB Agência – 11/04/2012)