(G1) Na emergência de um hospital entra uma mulher sangrando muito e é atendida às pressas. Ao perceber que a paciente havia feito um aborto, um dos médicos se recusa a atendê-la. Outra doutora, ao contrário tenta reanimá-la, mas não consegue salvá-la. Ao comunicar a perda da paciente a seu chefe comenta a atitude do colega. Interrogado sobre as razões da recusa, o doutor, islâmico, diz não poder atender uma pessoa que cometera um pecado, uma pecadora, pois sua religião não permite. A médica retruca que depois de vestir o jaleco branco os princípios religiosos devem ficar em segundo plano e deve-se agir segundo a ética médica. O chefe da clínica observa que o aborto ilegal está se tornando um caso de saúde pública.
Essa cena da novela da TV Globo “Amor à vida” poderia ter ocorrido em vários hospitais públicos do Rio de Janeiro. O debate apresentou dois argumentos em relação ao fato. O médico islâmico se justifica porque não socorre uma pecadora por questões religiosas e a médica defende a ideia de que no hospital deve-se agir de forma laica.
O aborto no Brasil só é permitido em algumas situações previstas em lei: quando há risco de vida para a mãe, quando a gravidez é fruto de estupro ou em caso de fetos anencefálicos. Interromper a gravidez de forma ilegal é uma das causas mais importantes de morte materna no País. Há uma luta grande para a legalização do aborto até a 12a semana de gestação, mas tem sido uma luta de poucas vitórias. Infelizmente, ainda não conseguimos vencer as barreiras que impedem a modernização de nosso código penal e as jovens brasileiras, sobretudo as mais pobres, se arriscam em clínicas de péssima qualidade ou tomam remédios perigosos e morrem silenciosamente sem assistência e sem piedade. São vistas e se veem muitas vezes como pecadoras.
Minha mãe teve dez filhos, era católica e obedecia ao dogma segundo o qual o casamento e as relações sexuais são abençoados se tiverem como fim a procriação. Com isso, aos 45 anos e mãe de nove filhos, sendo sete menores de idade, faleceu no hospital dos Servidores do Estado dando à luz à sua décima filha e deixando meu pai viúvo e os nove filhos órfãos, pois a menina nascitura também morreu. A gravidez era de risco para a mãe, mas, naquela época, em 1957 não havia lei que a protegesse e, além disso, era impensável para meus pais tirar a vida do bebê para salvar a mãe.
Disseram que foi erro médico, pois o obstetra que havia acompanhado as nove gravidezes de minha mãe não fez uma cesariana a tempo. Uma história triste de uma mulher que dedicou sua curta vida aos filhos e ao marido. Ela acreditava em Deus e na Igreja e, portanto, fez o que considerava certo. Viveu e morreu de acordo com sua crença.
Mas não é assim com todo mundo. Há muitas mulheres que não acreditam em dogmas e muito menos que há vida no embrião que carregam até se formar um feto. Essas pessoas ficam privadas de viver segundo sua consciência porque as leis do País não as protegem e, ao contrário, as constrangem a se comportar segundo crenças alheias ou a praticar um ato sem o amparo das leis.
O Brasil não descriminalizou o aborto e por isso, as clínicas ilegais continuam agindo sem nenhuma supervisão de médicos ou instruções de como conduzir essa intervenção de forma segura.
Ao contrário das mulheres brasileiras, as jovens uruguaias têm outra sorte. Desde a legalização do aborto no Uruguai, segundo notícia divulgada pela United Press Internacional, nenhuma mulher faleceu vítima deste procedimento de dezembro de 2012 até maio de 2013. Ainda segunda a mesma fonte foram realizados 2.550 abortos no período.
Lá como cá muitas jovens preferem interromper a gravidez e parece que as estatísticas são mais favoráveis às uruguaias porque dez em cada mil mulheres de 15 a 44 anos já fizeram pelo menos um aborto. Não sei os números referentes ao Brasil, mas acredito que sejam mais elevados.
O que me impressionou muito nessa notícia foi a forma utilizada pelo Uruguai para enfrentar a questão. As mulheres podem solicitar o aborto em qualquer instituição pública. As autoridades sanitárias uruguaias publicaram um manual e um guia dos procedimentos que as grávidas, os hospitais, as clínicas e os médicos devem seguir.
É possível solicitar o aborto até a 12a semana de gestação e em caso de estupro o período é ampliado para a 14a semana. Quando há má-formação de fetos ou risco de vida para a mãe esse período é sem restrições.
A cena da novela “Amor à vida” pode ser um alerta e espero que o debate produza algum efeito concreto para que o novo código penal siga o exemplo do Uruguai e descriminalize o aborto.
Acesse o PDF: Descriminalizar o aborto (G1, 29/08/2013)