Mulheres brasileiras têm buscado mais informações sobre a interrupção da gravidez desde que a epidemia do vírus foi anunciada
(Nexo Jornal, 13/09/2016 – Acesse no site de origem)
Transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, o zika vírus tem um efeito particularmente trágico para mulheres grávidas. Os bebês dessas mães podem desenvolver a chamada síndrome congênita do zika, que está relacionada, por exemplo, a problemas auditivos e visuais, convulsões e dificuldade de digerir. Em muitos casos, a síndrome se manifesta através da microcefalia, que ocorre quando o cérebro do feto não cresce dentro do normal.
Como resposta à crise, a Anadep (Associação Nacional de Defensores Públicos) ingressou no final de agosto de 2016 com uma ação no Supremo Tribunal Federal na qual pede que grávidas afetadas pelo vírus tenham direito ao aborto quando estiverem passando por “grande sofrimento mental”. Esse direito é concedido, por exemplo, na Colômbia, onde também ocorre uma epidemia de zika.
Atualmente, o aborto é permitido no Brasil em casos de estupro, risco à saúde da mãe ou anencefalia, quando os fetos não têm cérebro e sua sobrevivência é inviável. O aborto neste último caso foi permitido após o STF julgar uma ação sobre o tema em 2012.
Já a ação referente aos casos de zika não tem prazo para ser votada, mas sofreu recentemente um revés: o Senado se posicionou contra a medida e afirmou que o STF estaria se intrometendo em atribuições do Poder Legislativo caso liberasse o aborto.
Abaixo, o Nexo traz um resumo sobre o impacto do zika na questão do aborto, o debate sobre a mudança na legislação e mostra quem são as mulheres grávidas mais afetadas no Brasil.
Mulheres estão buscando mais ajuda
O pedido pela mudança da legalização do aborto em casos de infecção por zika ocorre em um momento no qual o número de mães procurando auxílio para interromper a gravidez cresceu no Brasil e em outros países da América Latina afetados pelo vírus.
É o que aponta o estudo “Pedidos de aborto na América Latina relacionados a preocupações sobre exposição ao zika vírus”, publicado em julho de 2016 no “New England Journal of Medicine”.
Para chegar a essa conclusão, pesquisadores estudaram as requisições de medicamentos que chegaram por e-mail ao site “Women on Web”, uma rede internacional de indivíduos e organizações pró-aborto que tem o objetivo de auxiliar, com informações e até envio de medicamentos, mulheres que desejam interromper sua gravidez. O foco são países onde a prática é restrita, como o Brasil.
A pesquisa coletou pedidos de auxílio ao aborto feitas entre 1º de junho de 2010 e 2 de março de 2016 em 19 países da América Latina, e analisou a taxa de aumento após o dia 17 de Novembro de 2015, quando a Organização Panamericana de Saúde publicou um alerta sobre o zika vírus na América Latina.
A pesquisa não serve para identificar o número total de mulheres buscando aborto, mas é um termômetro do interesse pelo procedimento no Brasil. O país teve a maior variação entre todos os países analisados.
Com base no ritmo anterior, cerca de 500 pedidos eram esperados no Brasil entre 17 de novembro de 2015 e 20 de março de 2016. Mas 1.210 ocorreram, um aumento de 108% – o maior registrado entre todos os países pesquisados.
Quem são as mães brasileiras mais afetadas pelo zika
No Brasil, cerca de 50% das mulheres são pretas e pardas. Mas oito de cada dez mães que tiveram bebês com microcefalia como decorrência da infecção por zika têm esse perfil.
As informações se baseiam em notificações de microcefalia feitas pelos Estados ao governo federal até o dia 23 de julho, e foram obtidas pelo jornal “Folha de São Paulo” a partir da Lei de Acesso à Informação.
O levantamento inclui quase metade de todas as 8.703 notificações feitas até aquela data. Na maioria dos casos, o quesito cor/raça não foi preenchido, razão pela qual os dados não incluem todos os casos de microcefalia.
Em entrevista ao jornal, Jurema Werneck, médica negra e militante da ONG Criola, ressaltou que há mais mulheres negras vivendo em comunidades vulneráveis a vírus como o zika, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti. Elas também tendem a ter mais dificuldade em realizar abortos seguros do que mulheres brancas.
“Há uma tragédia ambiental por trás da alta proliferação de mosquitos infectados com zika. A falta de saneamento, de coleta adequada de lixo, de acesso a água encanada ocorre nas comunidades negras (…) O Estado diz: você não pode abortar. Mas também diz que os seus filhos são problema seu”
Jurema Werneck
Médica negra e militante da ONG Criola, em entrevista publicada em setembro de 2016 no jornal ‘Folha de S. Paulo’
Sem auxílio, muitas mães têm que abandonar seus empregos para enfrentarem o desafio de se tornarem cuidadoras de crianças gravemente debilitadas.
“O cuidado de uma criança com múltiplas dependências precisa de um Estado social forte. Na ausência disso, ainda mais no Nordeste e nas zonas rurais, você faz uma imposição importante nas mulheres de serem cuidadoras”, afirmou à “Folha” a antropóloga Debora Diniz, da Universidade Nacional de Brasília, autora do livro “Zika: do Sertão Nordestino à Ameaça Global”.
Os argumentos contra o aborto nos casos de zika
Em seu pedido no STF, a Anadep (Associação Nacional dos Defensores Públicos) pede que se julgue a interrupção da gravidez em casos comprovados de zika como constitucional, suspendendo os efeitos da lei, como inquéritos policiais e prisões em flagrante.
Em seu site, a entidade diz que a autorização ocorreria apenas em casos excepcionais, quando houvesse sofrimento mental da gestante.
O Supremo Tribunal Federal pediu pareceres sobre o assunto à Procuradoria-Geral da República, que se manifestou a favor do aborto, para a Advocacia-Geral da União, que se disse contrária e para a advocacia do Senado, também contrária. Esta argumenta que:
A chance de que o feto de uma mãe infectada no primeiro trimestre de gravidez por zika desenvolva microcefalia é de cerca de 1%. A instituição se baseia em um artigo publicado em 2016 no periódico científico “The Lancet”, baseado em casos ocorridos entre 2013 e 2014 na Polinésia Francesa.
Embora complicações pelo zika possam causar problemas neurológicos, elas não levam necessariamente à morte, como ocorre com a anencefalia. Liberar o aborto nesses casos seria abrir caminho para a eugenia, a seleção de características genéticas desejáveis via o controle da reprodução.
A liberação também agiria sobre uma área que é de competência do Legislativo.
O Senado argumenta que o país tem compromisso em promover o desenvolvimento das pessoas com deficiência, o que estaria em desacordo com a ideia de interromper a gravidez de um feto apenas porque este poderia apresentá-la.
Segundo pesquisa realizada em 24 e 25 de fevereiro de 2016 pelo instituto Datafolha, 58% dos entrevistados são contra o aborto em caso de grávidas de zika, e 51% são contra mesmo quando a anencefalia é confirmada.