(O Dia) Em uma longa sessão de dois dias, o STF julgou constitucional o direito de a mulher interromper a gravidez em caso de gestação de feto anencéfalo, declarando que esse procedimento não configura crime na legislação brasileira. Por grande maioria, 10 ministros julgaram que não se pode exigir que uma mulher grávida de feto anencéfalo leve adiante essa gestação contra sua vontade colocando em risco sua autodeterminação reprodutiva, sua saúde física e psíquica. Para esses ministros, obrigar a mulher levar a termo essa gravidez equivale a submetê-la à tortura e desrespeitar a sua dignidade humana.
Com esse julgamento, o STF deu legalidade à prática do aborto voluntário em caso de gestação de feto anencéfalo, declarando que mulher e médico que fizerem esse procedimento estão amparados pela legalidade. Essa decisão é de grande alcance obrigando todos os órgãos da Justiça a reconhecer o direito da mulher em tal situação. Os 10 ministros consideraram as diferentes matrizes que informam o debate sobre o aborto em caso de anencefalia tais como dogmas religiosos, crenças e valores culturais, e também a separação entre Estado e Igreja, prevista em nosso ordenamento jurídico desde 1890. Essas matrizes nem sempre têm sido observadas por nossos legisladores ao esquecerem que, no Brasil democrático, a separação entre Igreja e Estado permite o respeito à diversidade e às diferentes necessidades dos sujeitos concretos.
O STF não se mostrou refém de crenças religiosas ou filosóficas tendo como norte o texto constitucional de 1988. A decisão do Supremo vinha sendo postergada desde 2004, quando a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, apoiada por diversas outras instituições, entre elas a CEPIA, moveu ação para que o STF declarasse a constitucionalidade da interrupção voluntária da gravidez em caso de gestação de feto anencéfalo.
Os votos apresentados pelos ministros favoráveis à legalidade desse procedimento calcaram-se em argumentos que evocam o avanço da ciência na detecção da anencefalia; o estado de necessidade e a inexibilidade de conduta diversa das mulheres que se encontram nessa situação; a lei que pune o crime de tortura; os tratados, convenções e declarações internacionais assinados pelo Brasil; o direito à privacidade, à autodeterminação e o direito à saúde, garantidos pela nossa Constituição.
Assim, após 72 anos da edição do Código Penal brasileiro, de 1940, o STF reconheceu mais um permissivo legal para a interrupção da gravidez de feto anencéfalo que se soma às duas outras condições de legalidade do aborto no Brasil: risco à vida e em caso de gravidez resultante de estupro. Com essa decisão o Estado brasileiro acata em parte a plataforma de ação da IV Conferência Mundial da Mulher, realizada em 1995, em Pequim, que exortou os estados partes da ONU, que ainda penalizam o aborto voluntário, a reverem e abrandarem sua legislação repressora da interrupção voluntária da gravidez.
Jacqueline Pitanguy é socióloga e coordenadora executiva da ONG CEPIA.
Acesse em pdf: O STF e os direitos humanos das mulheres, por Jacqueline Pitanguy (O Dia – 29/04/2012)