Ecos de Belém
Conselhos Regionais de Medicina. No começo deste mês, Belém seria a sede da primeira reunião de conselheiros médicos do País e o tema a ser discutido era inovador: a descriminalização do aborto no Brasil. Meu papel foi o de apresentá-los ao que a pesquisa em saúde pública brasileira produziu sobre o aborto ilegal e inseguro. Fomos três especialistas convidados a informá-los sobre uma questão que já estavam, antes de nós, preparados para decidir. Fui recebida por uma audiência atenta aos meus números e histórias de mulheres em sofrimento. Seguiram-me os textos do pecado e da prisão – um padre católico e um promotor de Justiça desfilaram os riscos do aborto para a fé e as intransigências do atual Código Penal em relação às mudanças prometidas.
Saí de Belém convencida de que a história do poder se altera, ainda que lentamente. Aquela reunião era o registro de uma mudança significativa: há 20 anos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) deu o primeiro murmúrio sobre a descriminalização do aborto como uma necessidade de saúde para as mulheres. Foram duas décadas de espera para que o atual presidente do CFM anunciasse “somos a favor da vida, mas queremos respeitar a autonomia da mulher que, até a 12ª semana, já tomou a decisão de praticar a interrupção da gestação”. Roberto D’Ávila faz referência ao projeto de reforma do Código Penal que tramita no Senado. Pelo novo texto, o aborto passaria a ser descriminalizado: mulheres e médicos seriam livres para decidir pelo aborto e pela assistência em saúde.
Os termos do pronunciamento do presidente do CFM não devem ser ignorados: “somos a favor da vida”. Tampouco devem ser entendidos como uma expressão coloquial do discurso da ética médica, que se autodefine como vitalista. É mais do que isso. Em 2012, o CFM publicou uma resolução em que autorizou as “diretivas antecipadas da vontade”; em termos mundanos, um testamento vital sobre como queremos morrer. Um paciente em estágio terminal pode decidir interromper seus cuidados médicos e planejar como deseja viver seus últimos momentos. Agora, o CFM enfrenta a questão do aborto. Não é à toa que o presidente precisa se postular como “a favor da vida”, pois provocar dois temas tabu não é simples para uma ordem moral que insiste em silenciar a morte e o sexo.
Ser “a favor da vida” é deslocar o tema do aborto da religião para a saúde pública, uma cartografia bem mais confortável para uma organização médica. D’Ávila e seus colegas foram sensíveis às crenças de seus médicos e ao principal opositor das mudanças do Código Penal em matéria de aborto, a Igreja Católica. Por isso um representante de sua ordem teológica esteve presente em Belém, um ato de respeito a quem insiste em ignorar que as mulheres abortam, mesmo sendo católicas. Imagino que uma mulher católica pobre talvez sofra mais do que suas irmãs sem religião: além de praticar um aborto inseguro, pôr sua vida em risco, ela teme a prisão e o pecado. O CFM quer ser parte de uma história que, ao menos do risco e da prisão, irá libertar as mulheres.
Mas a decisão do CFM foi ainda mais ousada. O conselho propôs que não é preciso atestado médico ou psicológico sobre a autonomia das mulheres para a realização do aborto. A posição ética foi clara: as mulheres são seres autônomos e, se convencidas de que desejam o aborto em vez do prosseguimento da gestação, o médico deve ser autorizado a socorrê-la. E, assim como nenhuma mulher deverá ser obrigada a realizar um aborto ou se manter grávida contra sua vontade, os médicos serão livres para decidir sobre a assistência. Não haverá o dever de aborto nem para as mulheres, nem para os médicos. O CFM apenas se posicionou a favor do direito de escolha como um gesto de proteção à saúde e à autonomia das mulheres.
Há muito tempo feministas e sanitaristas ecoam a tese de que o aborto ilegal e inseguro é uma questão de saúde pública. O significado dessa tese é alarmante: uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez, pelo menos, um aborto. Metade delas necessitou ficar internada para finalizá-lo, o que repercute imensamente na assistência pública em saúde. Outra metade das mulheres fez uso de medicamentos cuja procedência, segurança ou dosagem desconhecemos. Entre os 18 e os 39 anos, são mais de 3 milhões de mulheres que, em algum momento da vida reprodutiva, realizaram um aborto. Elas temeram pela saúde, pela fé e pela prisão. O CFM quer ajudá-las a não mais ter medo da morte. É preciso agora que o Senado Federal entenda que mandá-las para a prisão não é uma medida de saúde pública.
*DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO.
Acesse em pdf: Antropóloga relata o caminho que levou o CFM a se declarar a favor da vida e da autonomia da mulher (Estado de S. Paulo – 23/03/2013)