Nessa semana, o homem matou a amante grávida que não aceitou abortar. Ele precisava preservar a família. E o aborto serve pra isso. Desde quando as sinhazinhas emprenhavam subvertendo a ordem. “Sinhazinha diz que é moça, mas nessa noite, pariu. Meu zóio viu. Minha boca, piu”, já dizia a senhora descendente de negros escravizados, contando a história sob seu ponto de vista. Que ninguém era doido de abrir a boca pra falar dos chás, do vai e vem de bacias cheias de sangue nos corredores da família tradicional brasileira.
(Correio 24 Horas, 10/06/2017 – acesse no site de origem)
Ninguém foi doido de comentar quando a mãe religiosa obrigou minha amiga, adolescente, a abortar o feto que traria o namorado pobre e preto para o convívio da família. A mãe, kardecista, acredita em reencarnações e “respeita a vida”. Menos aquela vida que se colocou no caminho dela. Menos a vida da filha que quase morreu abortando em casa, sangrando litros, por dias seguidos. A mãe segue dando passes, no centro. É terminantemente contra a legalização do aborto. Acha que ninguém tem o direito de negar, ao espírito, a chance da reencarnação.
Não são poucos os casos de pequenas ossadas encontradas nas escavações em conventos católicos, restos de anjos abortados por aqueles que “respeitam a vida desde o início”. Provavelmente, fetos internados junto com as mocinhas de família que, subitamente, “descobriram a vocação”. Ou de freiras que levantavam seus hábitos porque reza e regras rígidas nunca controlaram hormônios, desejos, ereções, ejaculações e ovulações.
O aborto sempre foi um recurso, também, das famílias mais tradicionais, das pessoas mais conservadores e de rígidas instituições religiosas. Todo mundo sabe disso. Você já entendeu. O aborto sempre resolveu os problemas, também, daqueles que precisam exibir uma sexualidade contida, domesticada ou sublimada. Esses que, historicamente, descartam provas de que alguém fez um sexo proibido, inadequado. Provas de que seu “sistema de segurança” não funciona. Nunca funcionou.
Num escroto paradoxo, são as famílias mais tradicionais, as pessoas mais conservadoras e as instituições religiosas que – num misto de canalhice e covardia – atravancam qualquer avanço sobre a legalização do que pessoas sempre fizeram, fazem e farão. Não se trata de “preservação da vida”, sabemos que nunca foi essa a questão. Trata-se da manutenção dos véus, cada vez mais puídos, de um certo sentido confuso de moralidade.
Não tenho mais idade pra respeitar hipocrisias, pra acatar discursos que, na verdade, querem dizer outra coisa. E nem você deveria. Minha professora de português me ensinou a perguntar “a quem interessa”, diante de qualquer fala, de qualquer texto, de qualquer notícia, de qualquer cartaz. Interpretar. É essa a chave. E assim, de pergunta em pergunta, vamos todos descobrindo que os reis da “moralidade”, os defensores da “família tradicional brasileira” e todos os outros do mesmo balaio estão – e sempre estiveram – completamente, irremediavelmente e descaradamente nús.