(Terra, 03/11/2015) Milhares de peruanas foram submetidas à laqueadura forçada durante o governo Fujimori; após três arquivamentos, caso foi reaberto
Algumas mulheres foram levadas à força para a sala de cirurgia. Outras, ao simplesmente procurar um médico, por motivos distintos, foram esterilizadas sem consentimento. Em muitos casos, elas sofreram ameaças, constrangimentos e até mesmo chantagens para se submeter à cirurgia que as deixaria estéreis.
A maioria das denúncias sobre essas práticas vem das regiões mais pobres do Peru, principalmente das zonas rurais, mas também de periferias urbanas. As vítimas são quíchuas, aimarás, shipibas, asháninkas – mulheres que foram privadas do direito de decidir sobre sua reprodução.
Hilaria Supa, uma ex-congressista peruana e hoje parlamentar andina de origem quíchua, foi pioneira em formalizar denúncias: “As mulheres sabiam que era algo relacionado a sua saúde, mas nunca lhes foi explicado que se tratava de laqueadura de trompas ou da chamada ACV (Anticoncepção Cirúrgica Voluntária). Elas foram enganadas”, diz Supa à DW.
“Micaela, por exemplo. Foram à casa dela duas vezes dizendo que haveria uma campanha de saúde para toda a família, e a colocaram numa ambulância com o marido e o filho. Ao chegar ao hospital, disseram: ‘Homens, do lado de fora. Só entra a senhora'”, conta Supa. “Micaela entrou, foi trancada e anestesiada. Ela tentou se opor, mas não a deixaram sair. Só deixou o quarto depois de operada.”
Um relatório oficial da defensoria do povo peruano afirma que entre 1996 e 2001 foram feitas mais de 272 mil cirurgias de ligadura de trompas em mulheres e 22 mil vasectomias em homens. Os números excedem drasticamente os de anos anteriores.
Ninguém sabe se este foi um programa sistemático de supressão dos direitos reprodutivos das mulheres indígenas em áreas rurais ou se foram “práticas negligentes” na aplicação do Programa de Planejamento Familiar, decretado pelo então presidente, Alberto Fujimori. Só o que se sabe é que a Justiça peruana arquivou o caso três vezes.
“As primeiras investigações foram arquivadas porque os casos estavam prescritos. Eles foram considerados lesão ou homicídio por negligência, e tais crimes prescrevem muito rápido”, explica Yván Montoya, coordenador do Projeto Anticorrupção do Instituto de Democracia e Direitos Humanos da Universidade Católica do Peru. “Na época, os atos não foram considerados crimes contra a humanidade.”
Numa segunda ocasião, a promotoria continuou tratando o caso como negligência, mas o motivo principal para seu arquivamento, segundo Montoya, “foi considerar que as mulheres esterilizadas não passaram pela cirurgia sem consentimento”.
É aqui que entra em jogo o contexto das vítimas, fato importante para o processo: a suspeita de que as mulheres teriam sido ameaçadas para se submeter à esterilização. “A promotoria alegou que não houve imposição”, afirma Montoya à DW. Segundo ele, a chantagem de que as mulheres perderiam o apoio social do governo se não fizessem a cirurgia foi considerada “ameaça não confiável”.
“Claro que é difícil comparar as mulheres andinas, falantes da língua quíchua, pobres e de zonas rurais com mulheres do litoral ou da cidade, com instrução. Nota-se um grande desconhecimento da realidade e das condições entre as mulheres andinas”, diz ele.
O ativismo de ONGs e associações de vítimas levou o caso de uma dessas mulheres, Mamérita Mestanza, que morreu logo após a laqueadura, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Quando a promotoria arquivou as investigações pela terceira vez, uma onda de indignação se instaurou no Peru. A CIDH solicitou, então, a reabertura do caso. As investigações estão em curso. Uma conclusão está prevista para fevereiro de 2016.
Recentemente, o representante do Peru na CIDH, Juan Jiménez, falou sobre a importância de se elaborar um registro único de vítimas. Essa é também a reivindicação da Anistia Internacional peruana na campanha “Contra a sua vontade”.
Além desta, há outras manifestações em andamento. A organização feminista Demus apresentou recentemente a campanha “Somos 2074 e muitas mais”. Os objetivos são a criação de uma comissão da verdade, a elaboração de um cadastro único de vítimas, a investigação de Fujimori por crimes contra a humanidade e a implementação, pelo Estado, de uma política abrangente de reparação.
“A ideia central é que a indignação com esse tema se transforme em solidariedade concreta: que as pessoas saiam às ruas para lutar ao lado das vítimas, para que o Estado apresente um plano de implementação com os compromissos assumidos com a CIDH”, diz María Ysabel Cedano, diretora da Demus.
Reduzir a pobreza controlando a natalidade
Cedano afirma que o Peru continua sendo um país “profundamente racista e profundamente machista, onde muitos ainda creem que as mulheres camponesas indígenas das zonas rurais não deveriam ter muitos filhos”. O próprio Fujimori, que foi presidente do país entre 1990 e 2000, afirmou no início do primeiro mandato que aquela seria “a década do planejamento familiar”.
Segundo ela, foi elaborada uma política econômica no Peru que acreditava que, para lutar contra a pobreza, era necessário controlar a natalidade. “Se isso é feito por meio de cirurgias de esterilização, sem as medidas adequadas e sem garantir o consentimento esclarecido, existe aí uma responsabilidade”, diz a diretora da Demus.
Supa, por sua vez, tem esperança de que o futuro trará as reparações devidas às vítimas. “Depois de 18 anos, esperamos que a promotoria faça uma denúncia apropriada. Já se passaram três governos – Valentín Paniagua [após a renúncia de Fujimori], Alejandro Toledo e Alan García – que nada fizeram”, diz ela. “Acredito que o governo atual vai reparar as vítimas.”
Acesse no site de origem: O escândalo das mulheres esterilizadas à força no Peru (Terra, 03/11/2015)