(O Globo, 10/09/2015) A cada semana, Francisco anuncia uma novidade que torna a Igreja Católica mais fiel a Jesus e mais próxima do povo
Em março de 2009, o arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, excomungou a equipe médica que, em observância à legislação brasileira, ajudou uma menina de 9 anos, cuja saúde corria sério risco, a abortar gêmeos, após meses de gravidez. A mãe da menina também sofreu excomunhão. O padrasto, que violentava sexualmente a menor desde que ela tinha 6 anos, escapou da excomunhão, ou seja, da pena eclesiástica que desde 1398 impede o acesso aos sacramentos. Só bispos podiam revogar tal penalidade.
Francisco é um Papa surpreendente. A cada semana anuncia uma novidade que torna a Igreja Católica mais fiel a Jesus e mais próxima do povo. A 1º de setembro, ele comunicou: “Decidi conceder a todos os padres, para o ano do Jubileu da Misericórdia, a faculdade de absolver do pecado do aborto aqueles que o praticaram e, arrependidos de coração, peçam perdão.”
O Papa sabe que muitas mulheres são pressionadas a fazer aborto. Revelou que, em sua vida, encontrou “tantas que levam nos corações as cicatrizes dessa decisão sofrida e dolorosa.” E acrescentou: “O perdão de Deus não pode ser negado àqueles que se arrependeram, especialmente quando alguém busca o sacramento da confissão com um coração sincero para que obtenha a reconciliação com o Pai.”
Francisco recomendou que os padres digam “palavras de boas-vindas genuínas” às mulheres e aos médicos que os procurarem após o procedimento, mas que estejam conscientes da gravidade do pecado cometido.
Em agosto, o Papa defendeu o acolhimento, na Igreja, dos divorciados: “Quem estabelece uma união após o fracasso do casamento não é totalmente excomungado, e absolutamente não deve ser tratado dessa forma. Eles sempre pertencerão à Igreja, que deve manter suas portas abertas.” E, de novo, se referiu à homossexualidade: “Quando Deus olha para uma pessoa gay, Ele endossa a existência dessa pessoa com amor ou rejeita e condena?”
Tenho um irmão terapeuta. Tanto ele quanto eu acolhemos mulheres de gravidez indesejada ou inesperada. A diferença é que ele as recebe depois do aborto, quando, traumatizadas, sentem necessidade de arrumar a cabeça. E eu as recebo antes, angustiadas.
Proponho a todas as moças que me procuram, aflitas pela dúvida de ter ou não o bebê: tenham a criança e, em seguida, me tragam que eu crio. Até hoje não tenho nenhum filho adotivo. E todas me agradecem, felizes por terem vencido a pressão da família ou do parceiro para não assumir a gravidez.
Não sou favorável à criminalização do aborto. Ninguém o faz por prazer, mas a criminalização é um incentivo às clínicas clandestinas. Calcula-se que, no Brasil, um milhão de abortos são feitos por ano. O SUS atende 250 mil mulheres portadoras de sequelas. Na Europa, 90% dos abortos são seguros. Na América Latina, 95% são inseguros.
Houvesse a chance dessas mulheres pobres, vítimas de parteiras da morte e falsos médicos, recorrerem ao SUS e dialogarem com psicólogos e ministros de suas respectivas confissões religiosas, como ocorre na França, com certeza veríamos a redução do número de mortes de mulheres e de abortos. Onde ele deixou de ser clandestino pela descriminalização e o correto atendimento das grávidas, houve drástica redução de clínicas de fundo de quintal, e muitas grávidas foram convencidas a assumir a maternidade.
O que me intriga nos antiabortistas sectários é o fato de não condenarem, com o mesmo rigor, o comércio de armas, a pena de morte e as guerras. E, no Brasil, alguns ainda torcem pela redução da maioridade penal.
Abortiva é a sociedade que não propicia a todas as mulheres condições de gerarem filhos sem se sentirem ameaçadas pela miséria, o desemprego, e o machismo e a violência de parceiros irresponsáveis.
Culpa também de famílias e escolas que, sob pretexto de educação sexual, ensinam apenas cuidados de higiene corporal para evitar doenças sexualmente transmissíveis, sem aprofundar os valores da subjetividade e sequer pronunciar a palavra amor.
Acesse o PDF: O Papa e o aborto, por Frei Betto (O Globo, 10/09/2015)