Pesquisa analisa atuação da Justiça em casos de aborto clandestino: ‘inquisição reprodutiva’

08 de janeiro, 2025 Brasil de Fato Por Bianca Feifel

Estudo de Clara Wardi recebeu Prêmio UnB de Melhor Dissertação; confira entrevista com a pesquisadora

Em um país em que até o aborto legal está sob risco, mulheres que decidem interromper gestações de forma clandestina sofrem com a insegurança do procedimento, que pode levar a complicações de saúde graves, e com a criminalização de sua escolha, que desemboca em diferentes formas de violência institucional. Esse foi o objeto de estudo da dissertação de mestrado de Clara Frota Wardi, vencedora do Prêmio UnB de Melhor Dissertação na área de Ciências Humanas em 2024.

Em “Inquisição reprodutiva: análises sobre o aborto clandestino no Sistema de Justiça Criminal (2012-2021)”, a pesquisadora investigou microdados públicos produzidos pelas Secretarias de Segurança sobre o aborto clandestino no Brasil nos últimos dez anos. Por meio dos acórdãos judiciais, Wardi buscou entender os papéis sociais dos envolvidos, como a mulher acusada, a família, o feto, o genitor, o vendedor de remédios e os profissionais da saúde.

Em entrevista ao Brasil de Fato DF, a mestre em Sociologia explica como a atuação das polícias e do Judiciário em casos de mulheres que decidem interromper gestações clandestinamente assemelha-se a uma verdadeira “inquisição reprodutiva”. A pesquisa mostra que elas são julgadas pela sociedade e pelo sistema de justiça criminal a partir de fatores morais e discriminatórios.

As formas de perseguição de mulheres que buscam ter autonomia reprodutiva e compartilham saberes sobre o tema se atualizam com o passar do tempo, revitalizando a “caça às bruxas”. “Por não decidirem pela maternidade, [as mulheres que abortam] tornam-se bruxas deste tempo”, afirma Wardi.

“Mulheres que rompiam com expectativas sociais sobre a reprodução e a sexualidade foram associadas a seres essencialmente perigosos e ameaçadores, que é uma ideia que se propaga até hoje, mas sem essa associação tão direta à bruxaria”, destaca a pesquisadora.

A dissertação, orientada pela professora Tânia Mara Campos de Almeida, aborda um tema sensível, urgente e ainda pouco abordado no debate público. A pesquisa, que trata dos direitos reprodutivos de mulheres, foi premiada em um contexto político de articulação de forças conservadoras contra o aborto legal.

“Ter ganhado esse prêmio é um reconhecimento muito valioso de que os estudos sobre os direitos reprodutivos são legítimos dentro das ciências sociais e capazes de trazer contribuições para além do campo feminista”, aponta Wardi.

Confira, abaixo, a entrevista completa.

Brasil de Fato DF – O título da sua dissertação traz o termo “inquisição reprodutiva”, você poderia explicá-lo e dizer como ele se relaciona com os resultados que você obteve na sua pesquisa?

Clara Wardi – O título faz uma alusão à famosa caça às bruxas ocorrida durante a Idade Média, na Europa. Momento que demonstra que desde os primórdios, a criminologia, ou as definições do que seriam os crimes em uma dada sociedade, tem ligação com o controle e a punição feminina, em especial com o controle sexual e reprodutivo. O Martelo das Feiticeiras foi um documento da inquisição utilizado durante esse período para perseguir e castigar a bruxaria e as minorias sexuais, compondo pela primeira vez o poder punitivista em um sofisticado discurso da ciência criminal.

Mulheres gestantes, parteiras e curandeiras que prestavam serviços de parto, aborto entre outros tipos de compartilhamento de saberes sobre saúde reprodutiva foram perseguidas e assassinadas por essas políticas de Estado, que instaurou a caça às bruxas, também conhecida como o histórico genocídio de mulheres desse período. Nessa esteira, mulheres que rompiam com expectativas sociais sobre a reprodução e a sexualidade foram associadas a seres essencialmente perigosos e ameaçadores, que é uma ideia que se propaga até hoje, mas sem essa associação tão direta à bruxaria.

A dissertação foca na questão do aborto clandestino e por isso eu fiz essa relação já que as mulheres que realizam o procedimento nessas condições no Brasil ou, até de forma legal (já chegamos a esse ponto), são consideradas assassinas, passam por uma série de violências, sendo julgadas pela sociedade e até dentro do sistema de justiça criminal a partir de uma série de fatores morais e discriminatórios baseados em papeis de gênero raça e classe. Por não decidirem pela maternidade, tornam-se bruxas deste tempo.

Na sua pesquisa, quais foram as principais violências institucionais vivenciadas pelas mulheres que abortam clandestinamente identificadas por você? Como isso se relaciona com os recortes de raça, classe e local de moradia?

As violências institucionais são de diversas ordens. O fato de as mulheres terem que passar por todo um processo de criminalização por terem interrompido uma gestação de forma insegura já é o primeiro. Mas nesse trabalho de pesquisa, eu estive atenta em identificar como isso aparece dentro do sistema de justiça criminal, no caso formado pela segurança pública (polícia) e o Poder Judiciário.

Identifiquei violências institucionais diversas, como o interrogatório de policiais às mulheres em condições de saúde vulnerável, tendo muitas vezes passado por hemorragia; o acesso ilegal da polícia a documentos de saúde, como o prontuário médico; e julgamento moral sobre o ato no registro nos boletins de ocorrência como relacionar a motivação à “ambição” ou “negligência”, por exemplo.

A partir do inquérito policial, a situação já chega bastante contaminada ao Judiciário que reproduz e cria as próprias formas de poder e violência contra essas mulheres, como proibir sua circulação à noite, esmiuçar sua vida sexual, associá-las ao ato de assassinato e vinculá-las a outros crimes como o de ocultação de cadáver. Muitos processos se estendem até que elas sejam julgadas em Tribunais do Júri, muitas vezes em pequenas cidades, o que as deixa em uma situação de alta vulnerabilidade social dentro de seu território.

Nesse longo itinerário, as mais impactadas são mulheres pobres, negras e jovens por terem mais dificuldade em acessarem um aborto seguro.

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