(Agência Aids, 16/03/2015) O debate sobre a criminalização da transmissão do HIV ganhou as páginas nas últimas semanas por meio de diversas reportagens na mídia. Sonia Correa, pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, sigla em inglês), afirma, nesta entrevista ao site da ABIA, que a falta de informação sobre o tema e o despreparo da mídia brasileira ajudaram a criar um clima de pânico moral que afetou a sociedade. Para ela, ao deslocar o foco para um pequeno grupo que tem práticas sexuais dissidentes, como o barebacking, ficam obscurecidos os fatores e as condições que estão no centro do debate sobre aumento da epidemia.
ABIA – Como você avalia esta onda de criminalização da transmissão do HIV no Brasil?
Sonia Correa: As propostas de criminalização da transmissão do HIV não são recentes no Brasil. Desde os anos 1980, tem se utilizado os artigos existentes no Código Penal de 1940 (referentes à transmissão de doença contagiosa) para criminalizar pessoas que supostamente transmitiram o HIV a outras. O primeiro projeto de lei específico de criminalização do HIV é de 2001. Ainda em 2012, a ABIA produziu um relatório sombra sobre o problema da criminalização da transmissão do HIV no país que foi apresentado na Revisão Periódica Universal (RPU) do Conselho de Direitos Humanos da ONU (CDH ONU). O relatório identificou e analisou criticamente casos em andamento em que pessoas haviam sido acusadas, indiciadas e estavam sendo julgadas com base no Código Penal de 1940. O que há de novo, talvez, é que a onda atual se dá num momento político problemático, pois o novo presidente da Câmara Federal, o deputado Eduardo Cunha, é evangélico e declaradamente contra os homossexuais, o aborto e a prostituição. Ele já começou a desarquivar projetos de lei de corte conservador em relação a vários temas, inclusive no que diz respeito à criminalização da transmissão do HIV. Além disso, há uma enorme desinformação sobre essa questão no país. A mídia deveria ser mais reflexiva sobre o papel que vem desempenhando, pois até agora tem promovido o pânico moral. Por exemplo, não têm sido divulgadas no Brasil análises críticas – produzidas por agências das Nações Unidas, instituições acadêmicas ou redes globais que trabalham com HIV/aids – que estão disponíveis e relatam sobre a ineficácia e efeitos negativos dessas leis penais. Um deles é o Manual do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) sobre Criminalização de 2009 e, mais especialmente, o Relatório da Comissão Global sobre o HIV e a Lei, lançado em 2012 e publicado em português no ano passado. Algumas dessas análises apontam que, em vários países onde leis criminalizam a transmissão do HIV, o fenômeno ocorreu por efeito de situações de pânico moral criadas em torno de casos específicos de transmissão. Sobretudo, esse vasto conjunto de materiais sublinha reiteradamente que essas legislações não têm efeitos positivos do ponto de vista da saúde pública, ou seja, das medidas de prevenção.
ABIA – Qual é a situação atual das leis que criminalizam a transmissão do HIV no panorama mundial?
Sonia: Sempre que se fala nesse tipo de legislação, faz-se uma associação com as políticas globais de HIV e da aids implementadas pela administração de George Bush no começo dos anos 2000. Essa associação não é incorreta em razão do tom moralista das políticas norte-americanas do período que, de fato, influenciaram diretamente a adoção de legislação criminal específica nos países da África Subsaariana. Contudo, um grande número de estados americanos, o Canadá e vários países europeus, aplicam artigos de seus códigos penais (ou seja, leis penais gerais) para criminalizar pessoas acusadas de transmitir HIV e a aids. O exemplo mais conhecido e debatido é o da Suécia, que também criminaliza clientes de sexo comercial. Esse é um dado importante e paradoxal, pois os países do Norte, ditos desenvolvidos, que em geral são vistos como “modelos de democracia e bem estar”, nesse caso, não oferecem um bom parâmetro. Mapas recentes dessas leis criminais mostram que, se na África e outras regiões do Sul Global, leis específicas de criminalização da transmissão foram adotadas recentemente, não tem sido efetivamente implementadas. Já no Canadá, Estados Unidos e Europa, especialmente Suécia, a criminalização, de fato, se implementa a partir de leis não específicas e muitas vezes draconianamente. Por essa razão, as redes internacionais que trabalham com o tema fazem críticas severas e sistemáticas às políticas criminais desses países.
ABIA – Como a sociedade deve ser orientada sobre o tema?
Sonia: Já há alguns anos, a ABIA vem realizando ações para esclarecer a população e ampliar a discussão sobre a criminalização. Em 2010, em parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Pela Vidda Niterói, organizamos um seminário que resultou numa publicação, lançada em 2011. Já em relação ao relatório sombra que mencionei anteriormente, a ABIA mostrou como o uso feito pela polícia e o judiciário dos artigos existentes no Código Penal para criminalizar a transmissão do HIV pode constituir numa violação de direitos humanos. O caso emblemático foi o de uma mulher condenada no Rio de Janeiro pela transmissão do HIV e morte de um homem, sendo que o óbito havia acontecido antes da investigação. Podemos dizer que essa mulher foi condenada e presa como base no “disse me disse”. Embora ela possa ter tido relações sexuais com o homem falecido, o mesmo pode ter tido relações com outra pessoa com HIV positivo. Ou seja, nessas condições, era praticamente impossível a prova da transmissão. No ano passado, a ABIA também investiu na disseminação do Relatório da Comissão Global sobre o HIV e a Lei que é hoje um parâmetro fundamental do debate.
ABIA: Quais são efeitos negativos mais relevantes da criminalização da transmissão?
Sonia: Gostaria de citar outro documento importante no debate global sobre esse tema: a Declaração de Olso sobre Criminalização da Transmissão (2012) traz vários artigos sobre como e por que a criminalização gera mais danos do que benefícios em termos de saúde pública. O documento afirma, por exemplo, que as medidas que dão acesso às pessoas a testagem e medidas de prevenção como camisinha e, agora, as novas tecnologias, são sempre mais eficientes para uma resposta de saúde pública do que a adoção de uma lei penal. É isso que a ABIA tem defendido. A lei penal pode ter um efeito espetacular na mídia mas não impacta sobre os fatores estruturais que explicam a transmissão do HIV no sentido amplo que são determinadas por fatores como desigualdade de classe, gênero e raça, falta de acesso à informação, serviços e insumos. O que acontece na prática quando se adota uma lei penal desse tipo? Identifica-se alguém que é considerado culpado. Isso mobiliza paixões sociais em relação a essa pessoa que passa a ser vista como “a” responsável pela transmissão do vírus que mata, por que tem uma sexualidade desregrada. E quando o foco (da lei, da política, do debate público) isola essa pessoa ou um grupo pequeno, são retirados do debate outros aspectos mais relevantes que explicam a ampliação da epidemia. Por exemplo: o HIV continua sendo transmitido e a epidemia cresce ou se estabiliza porque um número significativo de pessoas não faz o teste, não faz prevenção necessária ou não se trata no caso de serem HIV positivas. O foco nas sexualidades dissidentes, como o barebacking, faz esquecer que a transmissão entre homens e mulheres continua por efeito da desigualdade de gênero, especialmente no campo da sexualidade. Foi o que aconteceu com a Talita, a participante do BBB que se tornou a “Geni” das redes sociais, porque não se previne como deve, enquanto seu parceiro foi completamente preservado. Há também os jovens que estão fazendo sexo com homens (ou aqueles que se autodenominam gays) e que, de alguma maneira, deixaram de fazer a prevenção porque as campanhas, mostrando que a epidemia não desapareceu, foram abandonadas. O tema do risco, particularmente entre homens, é um tema pouco debatido. As pessoas não estão usando camisinha por quê? Por que não encontram? Onde estão as camisinhas? As pessoas que são HIV positivo, se não estão se tratando, por quê? Enfim, tem várias perguntas de caráter social e cultural que ficam esquecidas quando se põe o foco em 3, 10, 15 pessoas envolvidas com práticas sexuais dissidentes de transmissão deliberada do HIV. A entrevista de Richard Parker ao Caderno “Aliás”, do jornal “O Estado de São Paulo”, explora esses aspectos em profundidade e dever ser lida por todos os interessados no tema.
ABIA – Como o movimento aids deve lidar com essa nova onda?
Sonia: É preciso ter muita cautela na questão das práticas sexuais, sejam quais forem, desde que ocorram sob consentimento. Além disso, qualquer debate que o movimento da aids faça (ou qualquer iniciativa que seja tomada em relação ao pânico moral criado em torno do barebacking no contexto dessa nova onda de criminalização da transmissão do HIV) é vital correlacionar esse tema com as demais questões que cabem na cesta da criminalização tais como o aborto, a criminalização de clientes de prostituição e a criminalização de drogas. Esses temas estão na pauta do Congresso neste momento. Existe, por exemplo, um projeto de lei chamado o Estatuto do Nascituro, cuja tramitação e a aprovação eventual podem implicar na eliminação dos três permissivos de aborto no Brasil, ou seja, casos de estupro, risco para a mãe e anencefalia. Considerando as condições políticas do Congresso, pode acontecer que o projeto do deputado João Campos sobre a criminalização de clientes de prostituição, também saia da gaveta para se contrapor a Lei Gabriela Leite, apresentada pelo deputado Jean Wyllys. Da mesma forma, há projetos draconianos sobre o aumento da criminalização do uso das drogas que tendem a ser desarquivados e que colocam o Brasil na contra mão da tendência mundial. Lá fora, incluindo os EUA, tem se repensado criticamente a “guerra às drogas”. Um debate informado e plural sobre a criminalização da transmissão o HIV – pensada nesse contexto mais amplo – pode contribuir para uma reflexão crítica sobre o recurso fácil da lei penal como instrumento de pedagogia social. Pois, hoje, no Brasil – assim como em outros países – essa perspectiva tem sido adotada sem maior cautela por vários movimentos sociais que lutam pela igualdade entre os gêneros e os direitos sexuais.
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