PL 1904 e a gravidez forçada: entre a boneca e o “bendito fruto”, por Jaqueline Alexandra Maccoppi

22 de julho, 2024 Portal Catarinas Por Jaqueline Alexandra Maccoppi

Os deputados a favor do PL 1904 são os mesmos que frequentemente propõem propostas legislativas baseadas em suas crenças.

Há que se diferenciar a vida reduzida ao mero fato de estar vivo e a vida dos portadores de direito.

O Estado, com seu poder soberano, tem a capacidade de transformar o estatuto da vida humana a uma vida “menos que humana”, criando espaços legais dentro dos quais pode-se deixar de lado a lei, excluindo-se direitos1 (estado de exceção2).

Com base nas teorizações do filósofo Giorgio Agamben, Penelope Deutscher discorre sobre a capacidade reprodutiva da mulher – categoria esta que deve ser lida como fictícia, incluindo-se nela todas as pessoas com útero – como a justificativa para a exclusão de seus direitos.

Nas palavras da autora, a capacidade reprodutiva da mulher é tanatopolitizada. Em suma, significa dizer: a mulher é despolitizada em razão do controle estatal existente na administração da vida reprodutiva, quando não encaminhada a uma verdadeira política de morte (tanatopolítica)3. Se, para Agamben, a tanatopolítica ocorreu nos campos de concentração nazistas, espaços em que as vidas eram “nuas”4, o espaço biopolítico paradigmático, para Deustscher, é o útero. É no útero que se encontra o espaço vazio dos direitos legais das mulheres5.

Também em razão da sua capacidade reprodutiva, a mulher é tida como uma pseudo-soberana. A elas, são associados o poder de agenciamento da morte (fetal, individual, coletiva, de população e de futuros potenciais)6. Sim, porque nesse contexto, a mulher é vista como uma potencial matadora. Ou, nos termos do recente PL nº 1904/2024, uma potencial homicida.

As narrativas que levam à imagem do corpo reprodutivo a essa potência mórbida são diversas, cabendo referenciar a forte base das crenças religiosas e sua noção de vida como criação divina. A polêmica entre as bancadas religiosas e a laicidade do Estado denotam uma cena incoerente e simbólica em relação ao aborto. Quase todos os deputados com posição contrária à extensão do aborto legal pertencem a alguma religião7, e nesse mesmo quadro devem figurar, também, os deputados a favor do PL nº 1904/2024. São os mesmos que frequentemente propõem mudanças e propostas legislativas baseadas em suas crenças, colocando-se como representantes em nome das religiões.

Esse mesmo PL que quer criminalizar o aborto realizado após 22 semanas, com a pena de homicídio (pena de reclusão, de 6 a 20 anos) – mesmo em caso de gravidez decorrente de estupro –, ignora toda a problemática de saúde pública, esvaziando todo o debate qualificado já realizado até aqui.

Vale citar que, na audiência pública realizada por ocasião do julgamento da ADPF 442, Lia Zanotta, representando a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), destacou que só em 2015 foram realizados 503.000 abortos, quase um por minuto. Dessas mulheres, muitas não estavam presas, mas estavam sendo processadas e, se tivessem sido presas, o sistema carcerário brasileiro seria 10 vezes maior que o atual, que já conta com milhões de encarcerados.

Para além de tudo isso, sabe-se das profundas amálgamas potencialmente fatais advindas dos eixos interseccionais de raça, gênero, classe e outros. Mais uma vez, serão as mulheres não-brancas e de baixa classe o alvo da política criminal em discussão.

Os direitos reprodutivos são, como argumenta Deutscher, precários. Verifica-se uma mitigação dos direitos reprodutivos da mulher em detrimento da vida embrionária, esta comumente referida nos discursos jurídico-penais, religiosos e morais. A precariedade se denota, ainda, da desinformação, da dificuldade de acesso a contraceptivos, e a atendimento hospitalar de qualidade8.

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