São 0h39 do dia 22 de março. Ana* está tentando interromper a gravidez. “Comecei o meu procedimento. Não sei se é coisa da minha cabeça, mas estou sentindo calafrios.” Ela está na nona semana de gestação.
(BBC Brasil, 06/06/2018 – acesse a íntegra no site de origem)
Durante as primeiras duas horas, não sente efeito algum e questiona se os remédios que tomou vão funcionar. “Eu estou muito ansiosa para dar certo.”
Após cinco horas de expectativa, começa a sentir dores muito fortes e se desespera. “Não sei mais o que eu faço! Está doendo demais, demais, demais. E não vou aguentar. Acho que eu vou desmaiar!”
O relato é feito em áudio e texto para outras 90 mulheres de diferentes regiões do Brasil que integram um grupo secreto no WhatsApp destinado orientar mulheres que querem interromper a gravidez, e, em último caso, fornecer remédios abortivos e acompanhá-las durante o procedimento.
“Acho que eu nunca senti tanta dor na minha vida!”, relata a jovem, chorando, em áudio enviado ao grupo. Outras mulheres que também interromperam a gravidez com medicamentos tentam tranquilizá-la. “Amiga, calma. Eu senti essa dor ontem. Tem alguém com você?”
“Não tem ninguém comigo. Tem só o meu irmão. Só que ele é pequeno, ele é criança. Não sei mais o que eu faço!”, responde Ana. Várias mulheres começam a se manifestar, tentando ajudá-la. “Esquenta uma bolsa de água quente e coloca na barriga. Logo vai passar a dor.”
Elas passam toda a madrugada trocando mensagens. O desespero de Ana, que dá detalhes das cólicas e do sangramento, continua. Às 7h, a jovem chega a cogitar chamar uma ambulância. “A dor está tão forte quanto antes. Será que eu já posso chamar uma ambulância? É muita dor, dor, dor!”
Fazer isso seria se autoincriminar por prática de aborto. E abrir caminho para que as mulheres que venderam o medicamento fossem denunciadas também. No Brasil, aborto é crime. Só é permitido interromper a gravidez em caso de estupro, risco para a vida da mãe e feto com anencefalia.
“Espera, essa dor vai passar”, diz uma das integrantes do grupo.
A voz adolescente chama a atenção das outras mulheres. “Quantos anos você tem?”, pergunta uma delas. “Tenho 16”, responde a garota. Ela conta que a família não sabe da gravidez. “Minha mãe deve chegar daqui a pouco. A casa está imprestável, principalmente os lençóis. Vou ter que contar para ela.”
Doze horas depois de começar a abortar, a jovem diz que a mãe chegou em casa. “Contei para ela. Ela falou que vai me levar ao médico. Vou apagar essas conversas.” Logo depois, a menina deixa o grupo de WhatsApp.
A BBC Brasil teve acesso às conversas do grupo por cinco meses para uma reportagem em português e em inglês. Uma das administradoras vende os remédios, que são encaminhados pelo correio. As outras se comportam como “guias” do aborto, responsáveis por acompanhar e “instruir” virtualmente – por mensagens, vídeos e áudios – as mulheres durante o procedimento. Elas não têm formação médica. Apostam na experiência e na dica de enfermeiros e médicos que conhecem.
As pílulas, as mesmas usadas como um dos métodos de aborto legal nos hospitais, custam entre R$ 900 e R$ 1,5 mil, dependendo da dose para cada estágio da gravidez. Funcionam induzindo contrações do útero para que o feto seja expelido.
Uma “guia” é designada a cada grávida, e elas trocam mensagens diretamente durante o procedimento. As administradoras do grupo orientam que todas procurem um hospital após o aborto para verificar se é preciso fazer curetagem (limpeza do útero) e dão instruções sobre o que elas devem dizer para convencer os profissionais de saúde de que perderam naturalmente o bebê e, assim, evitar serem denunciadas à polícia.
No grupo de WhatsApp, as grávidas recém-chegadas compartilham medos e tiram dúvidas com outras mulheres que já abortaram. Também são comuns conversas sobre o papel do homem na gestação e criação dos filhos e as leis restritivas ao aborto no Brasil.
Entre os casos que chamaram atenção da reportagem da BBC está o de uma menina de apenas 13 anos grávida do primo e o de uma jovem que diz ter sido vítima de um estupro e que optou pelo aborto clandestino por temer ser humilhada e forçada a dar detalhes da violência que sofreu.
“Eu tô com muito medo (de o aborto não dar certo), muito mesmo, até porque a minha gravidez veio de um estupro, então eu não posso ter esse bebê. Eu tenho medo e vergonha”, relata ela, que é confortada em seguida pelas outras mulheres.
“Meu anjo, se você foi estuprada você está protegida pela lei. Se você for ao hospital e contar o que aconteceu, eles farão o procedimento legal e de graça”, aconselha uma das mulheres. “Mas eu tenho muito medo. Medo e vergonha”, responde a jovem.
Os nomes das mulheres que participam do grupo foram trocados nesta reportagem. Várias podem ser menores de idade e algumas foram vítimas de violência ou estão em situação de vulnerabilidade.
A médica Alessandra Giovanini, coordenadora do núcleo de Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, alerta para os riscos de se fazer aborto sem acompanhamento médico.
“Acho que elas (administradoras do grupo de WhatsApp) têm até a intenção de ajudar. Mas essas pacientes correm o risco de ter uma hemorragia muito grande, correm o risco de ficar com restos ovulares e ter uma infecção que pode até levar à morte.”
Abortivos pelo correio
Para verificar a veracidade das promessas de venda do abortivo, a repórter da BBC News Brasil pagou R$ 930 via depósito bancário (R$ 900 pelo medicamento e R$ 30 do frete) após ser aceita no grupo identificando-se como uma jovem grávida de quatro semanas.
Dois dias úteis depois, o remédio chegou ao endereço indicado à vendedora. Seis pílulas vieram dentro de uma caixa de CD, envoltas em uma pequena embalagem de papel.
O volume de adesões e de abortos feitos por meio desse grupo de WhatsApp impressiona. Cerca de 20 grávidas entram nele a cada mês, pelas contas feitas pela BBC Brasil. Segundo uma das duas administradoras do grupo, cerca de 300 abortos foram realizados em três anos.
Muitas mulheres saem do grupo depois de interromper a gestação. A maioria relata sentir náuseas, fraquezas e dores durante o procedimento, mas destaca o apoio e a atenção recebida das mulheres que administram o grupo. Abortos são realizados diariamente sob a orientação das “guias”. Só no dia 28 de dezembro, pelo menos três gestantes abortaram, conforme as trocas de mensagens observadas pela reportagem.
Para entrar no grupo secreto de WhatsApp, é preciso ser convidada por uma das administradoras. As novatas são recepcionadas por esta mensagem:
“Olá, seja bem-vinda! Esse é um grupo feminista destinado à venda de medicamentos. Nosso grupo é um espaço de acolhimento e auxílio, então, por motivos de segurança, pedimos que apaguem o histórico do grupo no mínimo uma vez por semana, podendo haver verificação de cumprimento dessa solicitação.”
E todas as participantes precisam seguir regras, como não “fazer julgamento de cunho machista” e não compartilhar as conversas com pessoas de fora do grupo.
Elas recebem um PDF com instruções detalhadas sobre o procedimento, os contatos para a compra do medicamento e até o telefone de uma clínica clandestina na Grande São Paulo, caso prefiram fazer o aborto com um médico. Também é enviado um tutorial em vídeo.
O procedimento na clínica, conforme repassado pelas administradoras no grupo, custa de R$ 4,5 mil a R$ 7,5 mil, a depender do estágio da gravidez. Só a primeira consulta custa R$ 400, segundo uma gestante que procurou o serviço.
É uma possibilidade distante para a maior parte das mulheres que optam pela clínica virtual. Em várias ocasiões, mulheres relataram dificuldade até mesmo em juntar dinheiro para comprar o medicamento de R$ 900.
“Estou anunciando várias coisas pessoais para vender e fazendo doces, mas parece impossível levantar tanta grana sem que me faça falta dentro de casa”, comentou Carolina*. “Me encontro em uma situação financeira terrível e sozinha com dois filhos, uma de apenas dez meses.”
As mulheres que vendem o remédio justificam o custo alto dizendo que correm riscos ao comercializar o produto. O medicamento vendido por elas é proibido de ser comercializado no Brasil desde 2005, justamente por causa do efeito abortivo. O uso é restrito a hospitais.
“Nosso estoque está limitado e não podemos dar desconto. Salvo casos raríssimos. Não existe isso, gente. Isso é um produto ilegal e MUITO difícil de conseguir. O que mais tem por aí é falsificação. Respeitem o nosso trabalho. A gente cumpre com a nossa parte direitinho e sempre”, disse uma das coordenadoras do grupo.
Nathalia Passarinho