Especializado no atendimento a gestantes e bebês de médio e alto risco, o Hospital da Mulher Heloneida Studart (HMHS), em São João de Meriti, é a principal unidade de referência da Baixada Fluminense (RJ), cuja população é de 3,73 milhões de habitantes. O número de mulheres atendidas com complicações graves e com abortamento tem aumentado nos últimos anos, de acordo com a ex-diretora do hospital, a ginecologista Ana Teresa Derraik. Somente no dia 8 de janeiro de 2018, dois dos dez leitos da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) materna estavam ocupados por pacientes que tiveram o útero e outros órgãos perfurados, após recorrerem a métodos inseguros para interromper a gravidez. “Nossa UTI tem expertise na abordagem desses casos graves e que geralmente são pacientes que se arriscaram muito na tentativa de abortar. Voltamos a ver situações graves que não víamos mais desde 2005 e 2006. Há casos de mulheres com útero perfurado e alça intestinal saindo pela vagina”, relata a ginecologista.
(Catarinas, 03/06/2018 – acesse no site de origem)
A médica que trabalhou durante oito anos no hospital, cinco deles na direção, relembra o caso de uma jovem de 25 anos que, transferida de outro pronto-socorro foi atendida na UTI com uma infecção grave no útero pelo uso de soda cáustica. Provedora da família, a jovem que morava com a mãe de 70 anos e duas filhas, uma de cinco e outra de três anos, contraiu uma infecção generalizada e suas pernas foram amputadas para que pudesse sobreviver.
“A gente conversa com essas mulheres, acolhe do jeito que dá, explicando a gravidade da situação. Ela chegou morredoura. Sabíamos que o foco era o útero, pensamos ‘vamos tentar tirar o foco da infecção’, mas pode ser que ela morra. O fato é que ela sobreviveu, mas a medicação usada para manter a pressão prioriza as vísceras em detrimento das extremidades. Conseguimos recuperar as mãos com fisioterapia, mas os pés necrosaram. O aborto inseguro tem consequências inimagináveis. Acho essa história insuportável”, afirma.
Ana Teresa orgulha-se do atendimento humanizado a mulheres em emergência de pós-abortamento. Ela afirma que não há registro de denúncia policial por parte dos profissionais da unidade. “É uma diretriz institucional, o nosso atendimento é o mais respeitoso possível, tanto na acolhida dessa mulher, como na acolhida da família. Tem serviço psicológico, assistência social e enfermagem, toda uma equipe voltada para respeitar, acolher e cuidar da paciente”.
Médicos que se recusam a realizar o aborto nos casos previsto por lei (gravidez resultante de estupro, risco de morte para a mulher e anencefalia fetal), alegando objeção de consciência por crença moral ou religiosa – direito que lhes é garantido quando o procedimento fere suas convicções – não podem se negar a prestar atendimento emergencial para pacientes em situação de pós-abortamento. “A objeção só cabe quando o profissional vai causar o abortamento e não quando o aborto já está consumado”, explica.
A médica explica que em situações clínicas mais complicadas é preciso levantar a história da paciente para relatar as condições que levaram ao agravamento do quadro de saúde, que será posteriormente discutido em comitê de ética. Na maioria das situações, a informação de aborto provocado ou em estado de infecção já está expressa no pedido de vaga para outro hospital. Na opinião dela o aumento de casos graves tem como causa as constantes operações de fechamento de clínicas clandestinas e as dificuldades para acessar medicamentos abortivos, proibidos de serem comercializados no país, como o misoprostol que figura entre os essenciais para uso em obstetrícia, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). “Mulheres não estão acessando misoprostol como antes. É muito triste a gente tirar o útero de uma jovem de 18 anos que nunca teve filho. Geralmente os quadros são infecciosos, hemorrágicos, que podem condenar a uma esterilidade. O útero é o foco inicial, tentamos sempre preservar desde que não imponha maior risco de morte”.
Mesmo contraindicado pela OMS por causar perfurações no útero e outros órgãos, a curetagem pós-aborto, que consiste no esvaziamento ou limpeza do útero com o auxílio de uma cureta, continua sendo o método mais utilizado para este fim nos hospitais. É o terceiro procedimento cirúrgico mais realizado no Brasil, e o segundo em obstetrícia. De acordo com os dados do Datasus, somente em 5% dos atendimentos pós-aborto os médicos utilizaram a AMIU (Aspiração Manual Intra-Uterina), procedimento rápido e menos invasivo. “A curetagem passou a ser regra em algumas maternidades e os médicos vão perdendo o hábito de usar o AMIU. Há pouco tempo estávamos sem AMIU. Na época não consegui convencer gestores da importância de comprá-lo. Não há fornecimento periódico”.
Mortes subnotificadas
O abortamento inseguro é a quinta causa de mortalidade materna, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde, mas não é possível saber ao certo quantas mulheres morrem devido à incidência de subnotificação. “Há algumas situações em que as famílias não querem que apareça ‘morte por aborto’ no atestado de óbito. É preciso pensar que morte por doença estigmatizante é subnotificada. Então, morte por aborto é estigmatizante e sempre vai ser subnotificada. E nós vamos ter que buscar essa informação sem dizer quem está morrendo, mas sabendo quem está”, afirmou Maria de Fátima Marinho, diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde do Ministério da Saúde, em recente audiência pública na Câmara Federal sobre a mortalidade por aborto.
A redução da mortalidade materna foi a única meta dos sete Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), estabelecidos pela ONU, que não foi cumprida pelo Estado brasileiro. Só em 2015, morreram 1.738 grávidas no Brasil. A taxa de mortalidade materna do país foi de 54,9 para cada 100 mil nascidos vivos, bem acima da meta da ONU que é de 35 mortes a cada 100 mil nascidos vivos. O número de mortes pode chegar a 100 para cada 100 mil habitantes, dependendo da região do país. De acordo com a OMS o aborto seguro, com o uso de medicamentos, tem mortalidade menor do que o parto e reação à penicilina.
O direito de não engravidar
“Você planejou sua gravidez?” Apenas 20% das 400 gestantes atendidas na maternidade do Hospital da Mulher Heloneida Studart no último ano respondeu “sim” à pergunta feita por médicas e enfermeiras. Apelidado de “Formigueiro das Américas”, o município de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, tem a maior densidade demográfica da América Latina com 13 mil habitantes por km². Para Ana Teresa, a criminalização do aborto é a ponta de uma sucessão de violação de direitos para as brasileiras. “Os direitos sexuais e reprodutivos estão sendo negligenciados. Mulheres não querem engravidar e se deparam com a gravidez indesejada. O Brasil não consegue aprovar leis permissivas em relação ao aborto e atender demanda contraceptiva das nossas mulheres. É o país com o maior número de gestações indesejadas da América Latina. Onde estamos errando? Por que essas mulheres estão engravidando?”, questiona a ginecologista.
O estudo da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz, publicado em 2016, apontou que entre as mulheres que tiveram filhos no Brasil, 55,4% não planejaram a gestação, enquanto a porcentagem média mundial é de 40%. Os métodos contraceptivos são acessados por apenas 33% das mulheres, de acordo com a Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos no Brasil (PNAUM), de 2014. “Quem tem que dar conta da contracepção é a unidade básica de saúde, que é de competência do município. No hospital, se a mulher não sai com laqueadura tubária, o médico geralmente não coloca o DIU”, disse.
Para a médica, a falta de acesso aos métodos contraceptivos de longa duração, em parte por falta de capacitação dos médicos, é barreira para o acesso das mulheres ao planejamento reprodutivo. O DIU de cobre, único disponível nos postos de saúde, é subutilizado, sua taxa de prevalência – que considera o número de pessoas que fazem uso no momento em que o dado é coletado – é de menos de 2% em todo o país. Há mitos sobre o método que são perpetuados por médicos como, por exemplo, a possibilidade de aplicação somente após a primeira gravidez.
Recentemente, prefeituras de São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba, passaram a oferecer o método de implante subdérmico (inserido debaixo da pele, na região do braço) para mulheres em situação de vulnerabilidade social e que não desejam engravidar. O foco inicial do programa são mães adolescentes, usuárias de drogas, mulheres com HIV positivo e que passaram a viver nas ruas, conforme recomendação da OMS. O método considerado de longa duração pode durar até três anos. Em dezembro do ano passado, o Ministério da Saúde publicou a portaria Nº 3.265 que estabelece a disponibilização imediata de DIU de cobre pelos Estados, Distrito Federal e municípios às maternidades integrantes do SUS. A aplicação deve ocorrer no período entre 10 minutos a 48 horas depois do parto ou abortamento.
Conforme a OMS, o advento da pílula anticoncepcional reduziu a quantidade de gravidezes não desejadas, porém não eliminou a necessidade do acesso a um abortamento seguro: a cada ano em média 30 milhões de mulheres engravidam no mundo mesmo fazendo uso de contraceptivo.
Aborto é direito de meninas menores de 14 anos
Dos 400 partos mensais no hospital, 20% são de meninas com menos de 18 anos e 8% a 12% com menos de 14. Preocupada com o elevado índice de adolescentes grávidas, a então diretora criou um projeto de conscientização no Centro Integrado de Educação Pública (Ciep) Lima Barreto, vizinho do hospital, onde atuou com oficinas sobre sexualidade e prevenção de gravidez precoce. O colégio tem dois mil estudantes, metade identificado como pertencente ao sexo feminino.
A médica, ativista dos direitos sexuais e reprodutivos, mobilizou uma campanha de arrecadação de recursos para colocação de implantes contraceptivos de longa duração nas adolescentes. A aplicação foi feita no hospital após a autorização dos pais. “Preparei uma aula com papo reto para tirar o mito do sexo. Falei da importância do cuidado com o corpo como realizador dos sonhos e como a gravidez atrapalha quando vem na hora errada. Conversamos também sobre o enfrentamento à violência e a importância de se unir em rede com outras colegas”, relatou. Com a ação, o número de grávidas passou de 35, em 2015, para 5 em 2016 e nenhuma em 2017. “Quantas meninas ficaram grávidas no mesmo período no colégio da zona sul, onde minha filha estuda? Nenhuma! Quando minha filha de 15 anos contou que estava namorando, também apliquei o implante”.
O Brasil apresenta dados sobre gravidez na adolescência acima da média latino-americana, segundo informações da OMS em 2018. São 68,4 bebês nascidos de mães adolescentes a cada mil meninas entre 15 e 19 anos. Enquanto a média latino-americana é estimada em 65,5, no mundo a média é de 46 nascimentos a cada mil.
“Em princípio, toda menina com menos de 14 anos tem direito ao aborto legal se assim ela quiser, porque a lei entende que ela foi estuprada mesmo que a relação tenha sido consensual. São possibilidades importantes a serem reivindicadas. A gravidez na adolescência alimenta o ciclo de vulnerabilidade: quando ela engravida, deixa a escola e fica menos capacitada a uma parte do mercado de trabalho mais nobre. É assim perpetuado o ciclo de violência, a jovem fica suscetível a relações de dependência e violência.”