Uma enfermeira deveria poder fazer um aborto?

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Foto: Mídia Ninja

12 de fevereiro, 2025 Outras Palavras Por Gabriela Leite

Um procedimento simples e seguro, permitido por lei em casos específicos, que salva vidas de meninas e mulheres e poderia ser feito em um posto de saúde. É o que diz a OMS, apoiada pela ciência – mas não acontece no Brasil. Agora, o STF é provocado a analisar a questão

Por se tratarem de procedimentos de baixo risco, o aborto farmacológico e a aspiração intrauterina podem ser realizados por outros profissionais, não apenas médicos. É o que orienta a Organização Mundial de Saúde (OMS) em uma diretriz publicada em 2022. Mas não é o que vale no Brasil: apenas profissionais da medicina estão autorizados a interromper a gravidez nos casos permitidos em lei – anencefalia fetal, gravidez fruto de estupro ou que arrisca a sobrevivência da gestante.

O país passa por retrocessos até mesmo em relação à garantia do direito ao aborto nessas situações, que põem a vida das mulheres em situações limite. Os serviços de saúde que oferecem o atendimento são escassos e em muitos casos estão sendo desmontados. Entidades da saúde – Aben, Abenfo, Cebes, SBB, Rede Unida e Abrasco – junto ao PSOL entraram com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para rever quem tem permissão para tratar desses casos.

A ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 1207 pede a derrubada da limitação imposta no art. 128 do Código Penal, que define que apenas “o médico” não sofrerá punições na prática do aborto, nos casos previstos em lei. A ideia é que outros profissionais de saúde e a própria gestante podem atuar na interrupção de uma gravidez de risco ou fruto de um aborto.

Se trata, em primeiro lugar, de ampliação do acesso, como alerta a médica Ana Costa, diretora executiva do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde), uma das entidades peticionárias da ADPF. “Porque, hoje, o volume de partos de crianças e adolescentes é um escândalo, no Brasil. Isso significa que as meninas não estão tendo chance de interromper a gravidez, mesmo tendo direito”, completa.

Números atestam essa restrição do acesso à saúde reprodutiva no Brasil. Em estudo recente de pesquisadores ligados à UFSC, constatou-se que a oferta de aborto legal se dá majoritariamente em hospitais (98,6%), na região Sudeste (40%), em municípios com mais de 100 mil habitantes (59,5%). Estabelecimentos que oferecem os serviços estão em apenas 200 municípios brasileiros, ou 3,6%.

Jacinta Sena da Silva, presidente da Associação Brasileira de Enfermagem (Aben), entidade que está à frente da ação movida no STF, reforça a necessidade da ampliação do acesso, que seria beneficiada pelas profissionais que representa: “A enfermagem é muito capilarizada, o Brasil tem enfermeiro em todos os estados, em todos os municípios, às vezes em municípios que nem têm médicos. A presença em todas as unidades de saúde, em todos os municípios, dá condições de ampliar o acesso equitativo e qualificado”.

Hoje, “o Brasil não usufrui do potencial da capilarização da oferta do aborto nas primeiras semanas de gravidez e continua centralizando esse cuidado em estabelecimentos de maior densidade tecnológica, concentrados em capitais, o que limita o acesso ao serviço”, escreveu a Rede Médica pelo Direito de Decidir – Doctors for Choice/Brasil, em uma nota pública de apoio à ADPF.

Outros números que tornam essa realidade aterradora dizem respeito às gravidezes por estupro. No Brasil, qualquer ato sexual com menor de 14 anos é crime – portanto toda gestação que ocorre nessa situação deveria poder ser interrompida. Em um estudo sobre o acesso ao aborto conduzido no Distrito Federal, pesquisadores observaram que, no período de 2021 a 2023, apenas 34 crianças tiveram acesso ao aborto legal, enquanto o número de partos da faixa etária até 14 anos foi de 292.

Segundo dados do 17° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, quatro meninas de até 13 anos são estupradas por hora no país, sem contar a subnotificação. A gravidez, nessa idade, ainda é um risco para a criança que está gestando – e para o bebê que poderá vir. São pessoas assim a quem se está negando um serviço que pode definir suas vidas.

Segurança à enfermagem

Para além do acesso, há outra razão para permitir a realização do aborto por outros profissionais: garantir a segurança jurídica para quem já atua nesse serviço. É o que pontua Elisiane Gomes Bonfim, presidente da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo): “A gente já tem, no Brasil, uma rede de serviços estruturada que presta assistência ao abortamento previsto em lei. Dentro dessa rede, a equipe de enfermagem e de enfermeiras obstétricas também atua”, explica ela.

Jacinta Sena da Silva, da Aben, acrescenta: “A enfermeira e o enfermeiro têm condições técnicas e científicas para realizar o procedimento e oferecer a atenção integral que essas pessoas, especialmente as mulheres, requerem nessas condições”.

As enfermeiras podem ser muito importantes, por exemplo, na administração do misoprostol, o medicamento permitido no Brasil para a interrupção da gravidez. O método tem extrema segurança, mas a lei não permite que os profissionais de saúde sem a prática médica o utilizem. Segundo Elisiane, “a enfermagem administra diversos outros medicamentos, num trabalho em equipe que já acontece na prática”, alguns deles de maior complexidade que o misoprostol – a própria ocitocina, medicamento que pode ser usado para induzir o parto, cita ela.

Elisiane traz a questão para o mundo real: “Às vezes, a mulher fica mais tempo esperando para receber uma medicação. Está lá com a prescrição médica, mas fica aguardando porque, às vezes, o médico está em outro procedimento ou atividade. A enfermeira poderia fazer essa administração tranquilamente, do jeito que ela executa outros medicamentos prescritos”.

A médica Helena Paro, coordenadora do Nuavidas (Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual) em Uberlândia, também atesta a importância da pauta. “Sobretudo nas primeiras 12 semanas de gravidez, em que o aborto não precisa de ser um procedimento hospitalar, e sim ambulatorial, existe o compartilhamento de tarefas no cuidado em aborto com outros profissionais que não médicos. Inclusive os de nível médio de formação, como agentes comunitários de saúde.”

Helena, que é faz parte da Federação Internacional de Ginecologistas e Obstetras, cita a Etiópia como um bom exemplo de país onde estender a realização do aborto para profissionais da enfermagem e oferecer cursos de formação contribuiu para a redução da mortalidade materna, de 32 para 7 por 100 mil. E isso acontece inclusive em regiões afastadas dos centros urbanos. Ela acrescenta que a medida proposta pela ADPF diminuiria a sobrecarga dos médicos brasileiros, que poderiam se dedicar aos abortos mais complexos, como os com tempo gestacional mais avançado, que pode gerar mais complicações.

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