Bertolucci diz que a sequência entre Marlon Brando e Maria Schneider não foi combinada com a atriz
(El País, 05/12/2016 – acesse no site de origem)
“Queria sua reação como menina, não como atriz. Não queria que Maria interpretasse sua humilhação e sua raiva, queria que sentisse. Os gritos… ‘Não, não!’. Depois me odiaria para sempre”. Assim narra o cineasta italiano Bernardo Bertolucci as ambições artísticas por trás do estupro real planejado por ele mesmo e por seu executor, o ator Marlon Brando, no filme O Último Tango em Paris. A confissão foi recuperada por vários veículos de imprensa norte-americanos a partir de uma entrevista do diretor na Cinemateca francesa em 2013.
O vídeo, traduzido ao espanhol pelo portal El Mundo de Alycia no Dia Internacional contra a Violência de Gênero, tem mais de um milhão de visitas no YouTube. O filme, que foi um dos mais emblemáticos da década de 1970, demorou vários anos para se esquivar da censura em vários países, como no Brasil, por causa de seu alto conteúdo sexual. Em sua sequência mais lembrada, e agora infame, Brando, que naquela época tinha 48 anos, utilizava manteiga como lubrificante para violentar sua companheira de elenco, de apenas 19.
“Queria que reagisse humilhada. Acredito que odiou Marlon e a mim porque não contamos a ela”, afirmou o diretor de filmes como 1900 e Os Sonhadores. A ideia ocorreu ao cineasta e ao ator na manhã anterior à filmagem. Na mesma entrevista, Bertollucci esclarecia que, embora se sentisse “culpado”, não se arrependia da forma como dirigiu aquela cena. “Para conseguir algo é preciso ser completamente livre”, concluía.
Apesar de os rumores sobre a veracidade dessa cena já circularem entre os cinéfilos há vários anos e as declarações do diretor não serem novas, a confissão escandalizou boa parte de Hollywood. Estrelas como Jessica Chastain e Chris Evans declararam no Twitter que jamais voltarão a ver o filme, nem considerarão Bertolucci ou Brando da mesma maneira. “Me dá nojo”, diz a atriz de A Hora Mais Escura. Como resultado dessas afirmações, iniciou-se há alguns uns dias uma campanha no Change.org que exige que a Academia de Hollywood condene publicamente os fatos e o diretor italiano.
Schneider, que morreu em 2011 por causa de um câncer, jamais se recuperou emocionalmente depois da filmagem, vivendo longos períodos de depressão. Em uma entrevista ao jornal britânico Daily Mail em 2007, a atriz contaria em detalhes o momento de seu estupro. Declarações que passariam despercebidas pela opinião pública, que durante décadas evitou julgar os fatos. “Deveria ter chamado meu agente ou fazer meu advogado vir ao set porque não se pode forçar alguém a fazer algo que não está no roteiro, mas, naquela época, eu não sabia disso. Marlon me disse: ‘Maria, não se preocupe, é só um filme’, mas durante a cena, embora o que Marlon fizesse não fosse real [não houve penetração], eu chorava de verdade. Senti-me humilhada e, para ser honesta, um pouco violentada por Marlon e Bertolucci. Pelo menos foi só uma tomada”.
O “crime de estupro é qualquer conduta, com emprego de violência ou grave ameaça, que atente contra a dignidade e a liberdade sexual de alguém”. O elemento mais importante para caracterizar esse crime é a ausência de consentimento da vítima. Pela lei brasileira, por exemplo, não é preciso haver penetração para que o crime se caracterize como estupro.
A atriz terminava a entrevista acrescentando que uma das coisas que mais lhe doeu foi o comportamento de Marlon Brando depois da cena, que se negou a consolá-la ou preocupar-se com seu estado. As revelações do estupro em O Último Tango em Paris coincidem no tempo com as respectivas polêmicas sobre as suspeitas de assédio sexual de dois favoritos ao Oscar deste ano: Casey Affleck e Nate Parker.
Quarenta anos depois, parece que a justiça continua a brilhar pela ausência. Até quando Hollywood continuará silenciando seus crimes?