Gamers e feministas se enfrentam ao redor do caso ‘gamergate’; entenda

11 de novembro, 2014

(Folha de S. Paulo, 11/11/2014) Do término problemático de um namoro a ameaças de morte, passando por questionamentos de alguns sites jornalísticos. O #gamergate, como outras mobilizações que nasceram e se desenrolaram nas redes sociais, é uma mescla de fatos e interpretações.

Desde que o ex-namorado de uma desenvolvedora de jogos americana, chamada Zoe Quinn, divulgou em um site a história do relacionamento deles em que citava uma suposta traição dela com um crítico de games, em agosto, o movimento não parou de crescer em notoriedade –e em número de facetas.

Os “gamergaters”, adeptos dessa mobilização, dizem que há uma conspiração entre a imprensa especializada em videogames e alguns desenvolvedores, como Quinn. Os críticos rebatem.

“Os gamers acreditam que alguém virá tirar os brinquedos deles”, diz Leigh Alexander, que escreveu um artigo no “Gamasutra” que acarretaria a perda de um grande anunciante desse site, a Intel. A empresa foi pressionada pelos “gamergaters” a tanto.

Para Alexander, a fachada de crítica aos sites de videogame esconde o caráter misógino, de discriminação contra as mulheres, da cultura de jogos eletrônicos.

É a mesma opinião da universitária Marina Rocha Ciavatta, 21, que se considera gamer e trabalha esporadicamente com jogos eletrônicos. “A mulher vem perdendo o medo de se expor e, para um meio tão misógino quanto esse, isso é chocante.”

Nos games, diz, a caracterização da mulher como uma figura ora frágil, ora demasiado sensualizada, é fruto da imagem que têm os desenvolvedores, em grande parte homens, apesar de isso estar mudando, em sua opinião. “Precisamos de personagens reais, não ideias.”

VIOLÊNCIA

Quinn, assim como outra desenvolvedora, Brianna Wu, e uma crítica de games on-line, Anita Sarkeesian, foram ameaçadas de morte nos últimos meses, alegadamente em consequência da eclosão do movimento gamergate.

Sarkeesian cancelou uma palestra na Universidade de Utah no dia 15 depois de ter recebido por e-mail uma ameaça de atentado.

Anita Sarkeesian, do canal Feminist Frequency no YouTube, em fliperama de Minneapolis, EUA

Anita Sarkeesian, do canal Feminist Frequency no YouTube, em fliperama de Minneapolis, EUA (Foto: Alex Lazara – 17.jan.13/Associated Press)

Usando pseudônimos, internautas divulgaram que uma das contas no Twitter responsáveis por outras ameaças feitas a Sarkeesian seria de um brasileiro, Mateus Prado Sousa.

Sousa é dono de um site em que publicou vários artigos que criticam a ativista. Ele nega ter feito as ameaças e afirma que está investigando com seus advogados os autores da acusações.

Ele afirma que Sarkeesian é moralista ao criticar a sensualização da mulher nos jogos. “Ela quer censura”, disse à Folha. “Anita não é apenas feminista, é moralista. O feminismo se torna um problema quando vira moralismo.”

Para a historiadora Ana Bourg, 25, que diz jogar regularmente e que já colaborou com o desenvolvimento de games, o incentivo para a entrada no segmento pode ser um passo para a igualdade.

“Acho também que deveria haver canais de denúncia melhores”, diz. “Há toda uma cultura machista que mantém as mulheres segregadas nesse meio. As mulheres são uma parte muito grande do público gamer e nerd, mas muitas preferem não se identificar virtualmente para evitar assédio.”

BRASIL

Coordenadora da Abragames (Associação Brasileira dos Desenvolvedores de Jogos Digitais), Eliana Russi diz que o quadro de dominância masculina atual tende a mudar, em parte por causa de um novo processo de criação dos games.

“Está deixando de ser só das carreiras tecnológicas e demandando cada vez mais designers, roteiristas”, diz.

Segundo Russi, cerca de 30% das equipes de desenvolvedoras de jogos são mulheres, enquanto, nos cargos de direção, essa porção cai para aproximadamente 15%.

Camila Malaman, 33, da produtora Webcore, diz não ter sofrido com discriminação de gênero “assumidamente”, mas que teve problemas com um funcionário que, segundo ela, não aceitava ordens feitas por uma mulher.

“O número de mulheres em empresas maiores [de tecnologia] ainda é baixo”, diz. “Nossa geração já nasceu acostumada e aceitando [o machismo], está interiorizado, por isso acho que demora mais para mudar.”

MODERAÇÃO

Alguns argumentam que houve uma reação exacerbada contra o gamergate por causa dos episódios de ameaça.

Vozes mais neutras, como o da acadêmica feminista Chrstina Hoff Sommers no canal no YouTube do AEI (Instituto de Empreendedorismo Americano), foram duramente criticadas depois de pedir mais equilíbrio nas críticas à mobilização.

Cathy Young, autora de livros sobre feminismo, escreveu que vê misandria (ódio pelos homens, em oposição a misoginia) em algumas críticas de games feitas por feministas e na maneira como está sendo retratado o caso do gamergate.

A Mozilla, desenvolvedora do Firefox, emitiu um pedido de desculpas depois de ter defendido que o gamergate “tinha dois lados”.

*

LINHA DO TEMPO

16 de agosto

Um ex-namorado da desenvolvedora de games americana Zoe Quinn divulga um extenso relato do processo de término do relacionamento deles, que incluía uma longa lista de supostas traições, incluindo uma com um jornalista especializado em games, Nathan Grayson.

Grayson havia feito uma reportagem citando Quinn no site para o qual escreve, o “Kotaku”, o que gerou uma onda de revolta on-line

19 de agosto

Quinn publica carta em que relata ter recebido ameaças de morte e que fotos em que aparecia nua haviam sido divulgadas na internet, assim como informações privadas suas e de amigos seus

20 de agosto

Em meio à onda de comentários sobre o caso na internet, o “Kotaku” divulga um texto aos leitores, em que o diretor do site admite o relacionamento amoroso entre Quinn e Grayson, mas que isso não havia causado um conflito de interesses

27 de agosto

O ator Adam Baldwin (conhecido por “Nascido para Matar”, de Stanley Kubrick) usa pela primeira vez a hashtag “#gamergate” no Twitter, clamando por maior transparência no jornalismo de videogames. O termo cunhado faz alusão ao escândalo Watergate, que derrubou o presidente dos EUA Richard Nixon nos anos 70

No mesmo dia, uma jornalista que faz vídeos contra o machismo em videogames, Anita Sarkeesian, divulga que havia recebido ameaças de morte que a fizeram sair de casa

28 de agosto

Dez sites jornalísticos, entre eles quatro especializados em games, publicam artigos opinativos em que declaram “a morte do gamer” e criticam o machismo do meio dos entusiastas por jogos eletrônicos e o dos apoiadores do gamergate

Setembro

Internautas organizam uma ação para enviar e-mails a anunciantes dos sites que publicaram conteúdo contra o movimento gamergate para que as empresas cancelassem os anúncios; o WikiLeaks publica uma série de tuítes em apoio ao movimento e contra corrupção na imprensa

17 de setembro

O site “Breitbart” revela uma lista de e-mails privada em que jornalistas de videogame americanos discutem “a formatação de atitudes em relação a notícias no segmento” e “sobre o que fazer cobertura e o que ignorar”

1º de outubro

A Intel remove seus anúncios do site “Gamasutra”, um dos que participaram da cruzada contra o gamergate

11 de outubro

A desenvolvedora Brianna Wu divulga que estava recebendo ameaças de morte, supostamente pelos “gamergaters”, adeptos da iniciativa

15 de outubro

Anita Sarkeesian cancela uma palestra em uma universidade em Utah (EUA) após ameaças de um ataque a tiros. A ameaça, por e-mail, não mencionava jogos eletrônicos ou a hashtag, mas ela foi atribuída a seguidores do movimento

30 de outubro

Sarkeesian vai ao programa de TV de Stephen Colbert, nos EUA, e diz que o movimento tem como fachada a revolta de consumidores, mas que não passa de terror contra mulheres envolvidas com games

7 de novembro

A desenvolvedora Blizzard se pronuncia contra a faceta violenta do movimento, dizendo que ela prejudicava a imagem dos jogadores. Dois dias antes, a Mozilla havia pedido desculpas por ter escrito a favor de ver os dois lados do #gamergate, de maneira semelhante à Adobe, dias antes

Yuri Gonzaga

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