16/09/2013 – Sobre a necessidade de avaliar criticamente, em público, as mensagens publicitárias que permeiam nosso cotidiano, por Daniel Galera

16 de setembro, 2013

(O Globo) Seria incorreto dizer que nossa exposição constante à publicidade é sempre forçada. Há casos em que ela é opcional ou mesmo esperada.

Dia desses me dei conta de que, sendo usuário do aplicativo do Twitter para smartphones, eu andava lendo, fazia algumas semanas, os tuítes promocionais diários da cerveja Kaiser. Pode parecer uma constatação banal, mas somos afetados pela carga de publicidade à nossa volta de forma tão passiva que um instante de reconhecimento desses é um evento digno de nota.

“Calor ou frio, Kaiser Pilsen ou Kaiser Bock? Grandes dilemas desse Brasilzão velho sem porteira.” Esse foi o tuíte que apareceu no topo da tela, em cima das mensagens de outros usuários endereçadas a mim, e me fez puxar o freio de mão. Por que eu estava lendo aquilo todo dia? Comecei a estrelar esses tuítes para lê-los mais tarde, em sequência. “Galera confirmada pra pelada, carne comprada e Kaiser gelando. Assim é goleada na certa, mesmo perdendo o jogo.” “Pela manhã tá frio, à tarde esquenta e à noite volta a esfriar. Ainda bem que a sua Kaiser gelada tá sempre pronta pro que der e vier.”
Antes de prosseguir, um esclarecimento necessário: não estou atacando a cerveja Kaiser, que não considero melhor nem pior que todas as outras cervejas da sua categoria. O produto não está em questão aqui. O que está em questão são as mensagens publicitárias, assinadas pela marca, a que fui exposto de forma repetida e involuntária.

Seria incorreto dizer que nossa exposição constante à publicidade é sempre forçada. Há casos em que ela é opcional ou mesmo esperada. Escolhemos receber anúncios de nosso interesse ou entendemos e aceitamos que eles são o preço a pagar por serviços e produtos “gratuitos”. Empregamos nossa atenção e nossos dados pessoais como moeda de troca. Para ser honestamente contra toda e qualquer publicidade, seria preciso estar disposto a pagar, por exemplo, pelo acesso ao aplicativo do Twitter que nos torna alvos de anúncios.

Estou disposto a aceitar anúncios no meu aplicativo. A proposição que importa aqui é a seguinte: a exposição constante a uma publicidade massiva, muitas vezes em espaços públicos (concretos e virtuais) e de maneira involuntária ou indesejada, nos autoriza e nos convida a termos uma postura crítica, tanto individual quanto coletiva, diante do conteúdo dessa publicidade. Quantas vezes precisamos ouvir que um produto foi desenvolvido “especialmente pra VOCÊ” até começar a filtrar essa bobagem e reagir com o devido desprezo contra a marca ou empresa que joga essa retórica em nossa direção?

Em um texto chamado “Consumo consciente”, publicado há cerca de um ano no Portal Homem, Eduardo Pinheiro fez uma análise interessante da nossa condição de consumidores. “A crítica mais adequada ao capitalismo é que ele transforma a pessoa num consumidor, nada mais e nada menos que isso”, diz Pinheiro. “Para enfrentar (ou conviver) com o capitalismo, não precisamos mais do que constantemente buscar colocar nossa humanidade à frente do nosso ato de consumo.”

É nesse contexto que se torna não apenas justificável, mas também necessário, avaliar criticamente, em público, as mensagens publicitárias que permeiam nosso cotidiano. A publicidade faz parte da cultura, influencia pesadamente nossa conduta privada e pública, nossas ideias e hábitos de consumo, e alguns publicitários dirão que ela é arte. Se paramos para pensar, é surpreendente que a crítica cultural da publicidade não ocupe quase nenhum espaço no debate público. Essa crítica não deveria acontecer somente em questões polêmicas (um anúncio sexista, um artista “se vendendo” para endossar um produto) ou criminosas (homofobia, propaganda enganosa et cetera).

Deveria acontecer, por exemplo, quando reparamos na infantilidade reinante na publicidade atual. Assistindo a um comercial de banco na TV com aquele narrador em estilo “vovô carinhoso” (Itaú, Banrisul), conviria refletir se o que esperamos de um banco é que ele trate você como um netinho mimado que gosta do cheirinho do colo do vovô. Sem falar que, na vida real, o locutor é provavelmente um magrinho sórdido com um caso grave de bócio.

“Pergunta: qual é o petisco que você é mestre em fazer e que deixa a sua galera com água na boca naqueles dias de Kaiser em casa?” O consumidor passivo de publicidade deixa passar uma coisa dessas, e é possível que o anúncio seja eficiente para uma boa parcela. Para um consumidor atento e crítico, porém, a única resposta possível para essa pergunta é outra pergunta: “Alguém é criança aqui?” Ou talvez: “Que dias de Kaiser em casa?” A reação do consumidor crítico poderia ser outra se o anúncio fosse mais inteligente e informativo. Aliás, eis uma boa técnica para o dia a dia: responder em voz alta às perguntas retóricas feitas pela publicidade. A apelação, a infantilização e a falsificação de necessidades não costumam resistir a esse teste.

Acesse o PDF: Ninguém é criança aqui (O Globo, 16/09/2013)

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