Não deve ser fácil escrever uma novela.
Além de todo o talento necessário à empreita, há que se garantir a audiência da emissora que bancar o projeto.
Para isso, alguns capítulos estão prontos na estreia e, depois de acompanhar o índice de audiência, fazem-se pesquisas qualitativas.
Grupos representando a diversidade da audiência são convidados por um instituto a dar a sua opinião sobre a novela, as situações mais relevantes, as personagens. E, baseado na análise dessas avaliações, o/a autor/a dá mais, ou menos espaço a determinados temas e personagens.
Babilônia, novela de Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga das nove horas da TV Globo acabou recentemente.
Ousada em algumas de suas propostas, onde a diversidade a orientação sexual existente e reconhecida culturalmente e que, inclusive pode contabilizar algumas vitórias (como o reconhecimento da união homoafetiva, a possibilidade de adoção de crianças), foi uma dessas “ousadias”.
Ousadia, entenda-se bem, não porque a novela propusesse nada de novo – afinal, refletia a nova aceitação de uma diversidade maior de tendências em nossa sociedade – mas provavelmente porque, com a migração de um segmento de telespectadores – particularmente os jovens, habitualmente mais abertos às novidades e talvez menos preconceituosos – para a internet, deixando frente à tela da TV um segmento de mais idade e mais conservador.
Afinal, a grande mídia não inventa valores e situações, mas reflete – talvez de forma bastante seletiva, segundo os seus critérios e valores – o comportamento (ou, melhor dizendo, alguns dos comportamentos) que percebe na sociedade. Que ela seleciona, desterritorializa, resignifica e termina por transformar em moda.
E foi justamente o que os autores apresentaram no primeiro capítulo, com personagens vilãs (Gloria Pires e Adriana Esteves) com excelente performance e um beijo carinhoso entre as lésbicas vividas por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg.
Além disso, tivemos cenas de violência doméstica e assassinato. Com direito a filha esbofeteando mãe, e filho ameaçando pai, a audiência foi despencando.
E, como aponta Nilson Xavier, em matéria publicada no dia 28/08/2015 , para piorar, a mocinha, vivida por Camila Pitanga, ganhou a pecha de chata e a antipatia do público.
“Uma ala mais conservadora da sociedade”, que aliás se manifestou em vários momentos e episódios políticos recentes (como na derrota da inclusão de questões de gênero, em diversos Planos Municipais de Educação, que propunha a discussão crítica das diversas formas de preconceito na escola, para desnaturalizá-las) iniciou uma campanha anti-Babilônia.
Como resultado, os autores mudaram uma série de aspectos e perfil de personagens da novela.
A grande vilã Beatriz (Glória Pires), uma mulher fria e calculista, ávida por sexo e poder, se revelou uma romântica boboca ao se apaixonar pelo nadador Diogo (Thiago Martins), num romance pouco crível. Alice (Sophie Charlotte) e sua mãe Inês (Adriana Esteves), que se odiavam, se reconciliaram e viraram melhores amigas da noite para o dia. Alice, que era para ser uma prostituta de luxo, se tornou uma mocinha chorosa. O cafetão Murilo (Bruno Gagliasso) só não perdeu a função na novela porque, nas últimas semanas, os autores o pegaram para ser a vítima do “quem matou”. O romance entre Alice e Evandro (Cássio Gabus Mendes), meloso e forçado, foi outra mudança drástica, já que ele havia sido apresentado como um machista mau caráter no início. Ficou claro o foco nos romances para tentar fisgar o telespectador. Os autores também investiram mais no humor do triângulo cômico (mas pouco engraçado) envolvendo Norberto, Valeska e Clóvis (Marcos Veras, Juliana Alves eIgor Angelkorte). E diminuíram o foco nos personagens gays. O romance estre as lésbicas, que prometia ser uma abordagem interessante, praticamente sumiu da história, sem mais beijos. Outro personagem descaracterizado foi Carlos Alberto (Marcos Pasquim), que seria um gay enrustido de caso com Ivan (Marcello Melo Jr.), mas que acabou envolvendo-se com Regina.
Mas todas as concessões feitas à opinião pública do segmento mais conservador da audiência à telenovela, além de descaracterizar, apresentaram mudanças de alguma forma artificiais, que nem a tornaram mais palatável, nem reapresentaram as propostas mais inovadoras numa embalagem mais aceitável.
No fim, com finais felizes para todos os casais e punição das principais vilãs Inês (Adriana Esteves) e Beatriz (Gloria Pires) jogadas de um precipício, embora dando uma audiência mais razoável (32,2 pontos), não a salvaram do despencamento de 18 pontos com relação ao final da última novela (Império).
A FUNÇÃO SOCIAL DA MÍDIA
A TV, e particularmente as novelas, não inventam comportamentos e valores, mas reproduzem os que lhes convém focar. E, com isso, amplificam o seu alcance – transformando-os em moda ou contribuem fortemente para a sua naturalização e multiplicação na cultura.
Assim, numa cena que foi ao ar no dia 26/08, a mando de Beatriz (Gloria Pires), Osvaldo (Werner Schünemann) vai sequestrar a advogada Inês (Adriana Esteves), e levá-la até o alto do morro Babilônia, onde ele vai torturá-la para que ela deixe a presidência da construtora Souza Rangel. Osvaldo coloca a advogada dentro de uma pilha de pneus, em que joga gasolina e ameaçar atear fogo.
Uma conversa flagrada num bar de São Paulo, numa mesa grande onde as pessoas prestaram atenção ao capítulo da novela que a TV exibia, pode-se perceber o efeito imediato desta cena – aprovação, e votos de que as duas personagens femininas que ousaram se beijar, merecessem destino igual.
É precisamente isso que cansamos de apontar, quando falamos da influência na cultura, e na formação da subjetividade da população, pelo conteúdo da mídia.
Tudo bem que este procedimento não foi inventado pela Globo, nem pelos autores da novela, que reproduziram uma cena de violência que deve ter ocorrido em algum lugar do país, e que lhes pareceu forte o bastante para, quem sabe, resgatar a audiência nos capítulos finais.
Mas, mais do que a audiência de uma novela, cabe pensar no que deveria ser (mas infelizmente não é) a função e responsabilidade social da mídia – e, particularmente, quando falamos de uma mídia de massas, que também é uma concessão pública.
A novela terminou, e não há resgate possível, nela, com relação ao episódio em questão. Mas também não podemos deixá-lo passar em branco e, no mínimo, alertar os autores de novela, os decisores da mídia, e as autoridades governamentais, sobre o prejuízo que esta inconsequência pode trazer para a nossa sociedade, naturalizando assim mais este episódio de violência de gênero, e de violência em geral.
Ainda mais num tempo em que parece estar se legitimando o “fazer a justiça com as próprias mãos”, como relatado em dois episódios recentes, cobertos pela mídia.
No primeiro, a população agarra um moleque que roubou algo do supermercado, amarra o menino num poste, e bate nele até matá-lo, em São Luiz do Maranhão (http://extra.globo.com/casos-de-policia/assaltante-amarrado-em-poste-espancado-ate-morte-por-pedestres-em-sao-luis-16686215.html). E, mais recentemente, um final trágico similar teria sido corajosamente sustado pela intervenção de Joel Rufino, historiador, que impede o linchamento de um ladrão, ensanguentado, que levava porrada de saradões, mulheres, velhos, em Copacabana, no sábado passado, enquanto um policial civil armado assistia a tudo sem se meter. (Mamapress, no site Geledés – fonte: http://joelrufinodossantos.com.br/paginas/biografia.asp)
Precisamos veicular este nosso alerta. E, mais do que isso, precisamos de uma manifestação impactante dos órgão que combatem a violência de gênero, que traçam políticas públicas de interesse das mulheres, e que, ao menos teoricamente, podem inclusive impactar em algum alerta institucional a ser encaminhado à Globo, com repercussão pública, para que tais situações não se repitam e, se possível, tenham algum espaço de resgate, de modo a contrabalançar o seu efeito nocivo.
Rachel Moreno