03/11/2013 – Política do filho único gera tensão na China

03 de novembro, 2013

(Folha de S.Paulo) Shi Hui tinha 46 anos quando uma gravidez tardia a pegou de surpresa. Mas ela já tinha um filho e, se tivesse o segundo, seria forçada a pagar uma multa pesada por violar a política chinesa de filho único.

Decidiu abortar.

Passados dois anos, seu filho, de 21 anos, contraiu um linfoma que em poucos meses o matou. A perda devastou os pais e levou ao fim da união. Um ano depois, o casal decidiu se divorciar.

O drama da secretária aposentada é um dos mais cruéis efeitos colaterais do sistema chinês de controle de natalidade, implantado em 1979 e em vigor até hoje.

Conhecidas como “shidu” (filho perdido, em mandarim), as famílias chinesas que perderam o filho único formam um grupo amargurado de um milhão de pessoas. Segundo estatísticas oficiais, a cada ano, 76 mil casais se tornam “shidu”.

“O governo se preocupa com o crescimento da população, mas não pensa nas consequências da política do filho único para as pessoas”, lamenta Shi, 50. “A vida era dedicada ao nosso filho. Quando ele morreu, sentimos que perdemos tudo.”

Desamparada, Shi buscou ajuda na internet e achou o grupo “Ninho Vazio”, que dá apoio psicológico e material a casais que viraram órfãos do filho único. Hoje ela é voluntária do serviço.

A professora de filosofia Xu Kun, fundadora do grupo, diz que desde 2006, quando foi criado, o serviço de apoio telefônico já recebeu mais de 35 mil ligações de pais.

Ela explica que a carência não é só emocional, mas econômica. Pela tradição, o chinês tem o papel de cuidar dos pais na velhice.

Num país em que quase metade da população não tem plano de aposentadoria, o filho é um investimento.

“Muitos asilos recusam pais que perderam os filhos porque eles não têm ninguém para servir como responsável”, diz Xu.

Recentemente, surgiu uma nova onda de especulações de que a política de planejamento familiar estaria prestes a ser alterada. Na semana passada, foram negadas pelo governo.

Desde que foi implantada, a política sofreu algumas alterações. Pais que são filhos únicos podem ter um segundo filho. Nas áreas rurais, a permissão vale somente para os que têm uma menina primeiro.

MULTA MILIONÁRIA

De forma geral, porém, a proibição é aplicada de forma severa, e quem a descumpre está sujeito a pagar altas multas, calculadas conforme a renda do casal.

Mesmo para quem ganha pouco, a multa pode chegar a várias vezes o seu salário.

Um caso recente movimentou as colunas de fofocas chinesas. A imprensa oficial noticiou que o cineasta mais famoso do país, Zhang Yimou, era investigado por ter sete filhos. Jornais locais estimaram que a multa poderia chegar a 160 milhões de yuans (R$ 59,2 milhões).

Uma das críticas à política de filho único é que ela não se aplica aos abastados. A discriminação gera revolta e é um fator explosivo de instabilidade social.

Há três meses, um homem matou a facadas dois funcionários da agência de planejamento de Guangxi (sul) ao ver negado o registro de seu quarto filho por não ter meios para pagar a multa.

Em muitos casos, porém, mesmo quem tem condições financeiras de sobra respeita a lei, por ideologia ou para garantir a ascensão no serviço público ou numa estatal.

O magnata do setor imobiliário Wang Jianlin, 58, recém-coroado o homem mais rico da China com uma fortuna estimada em R$ 49 bilhões, tem só um filho e ótimas relações com o Partido Comunista, do qual é membro desde os 22 anos.

Mas não é preciso ter bilhões para romper o limite. Propinas a agentes do governo podem facilitar o registro do segundo filho.

Muitas vezes basta saber usar o “guanxi”, o jeitinho chinês de acionar uma boa rede de contatos. É o caso dos professores Sun Yong, 31, e Chen Yumei, 30, que têm um casal de filhos.

Sem querer entrar em detalhes, eles contam que registraram a filha Beibei, 5, um ano mais nova que o primogênito, Jingjing, com a ajuda de conhecidos em sua província, Shandong (nordeste).

A família destoa da paisagem dominada por filhos únicos e atrai olhares curiosos quando passeia pelo bairro de Pequim onde vive. “Muita gente acha que eles são gêmeos. Outros me param para perguntar: como conseguiram?” conta a mãe, Sun.

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Medida criou um desequilíbrio demográfico

A política do filho único gerou um desequilíbrio demográfico e agravou o problema do envelhecimento da população da China.

Em 2007, havia seis adultos economicamente ativos para cada aposentado.

A projeção dos especialistas em população é que, até 2040, essa proporção caia a dois para um.

O governo chinês argumenta que, desde que foi implantada, a política do filho único evitou 400 milhões de nascimentos -o país já é o mais populoso do mundo, com 1,3 bilhão de habitantes.

Opositores, porém, apontam o impacto social negativo da política, sobretudo a discriminação de gênero.

Como meninos são preferidos, aumentou a prática do infanticídio no país.

Análise: Interesse político impede que haja revisão da norma pelo governo

A política de um filho por casal deveria ser uma medida “de transição” para conter o crescimento populacional exagerado do país.

Passados mais de 30 anos, ela perdura, a despeito de alertas quanto aos seus efeitos punitivos sobre o desenvolvimento da China.

Tentativas repetidas de derrubar a regra resultaram em mudanças pouco significativas.

Em lugar disso, a norma vem sendo aplicada, com imenso custo humano: abortos forçados em momento avançado da gestação; agravamento da disparidade entre os sexos; traumas e desgaste econômico crescente para os pais que perdem seu único filho; multas punitivas.

Embora abortos e esterilizações forçados sejam ilegais, e muito menos comuns do que costumavam ser no passado, essas práticas são encorajadas pelas metas nacionais de planejamento familiar e perpetuadas pela falta de controle efetivo sobre os abusos locais.

Muitas pessoas usam dinheiro para escapar aos problemas. Uma família pagou multa de 1,3 milhão de yuans (cerca de US$ 136 mil), no ano passado.

Outras fazem onerosas “doações” a fim de obter vagas escolares para crianças desprovidas de documentos.

Muita gente suspeita que as multas -conhecidas como “taxas de compensação social”, em reconhecimento do custo adicional que um filho não autorizado causa para a sociedade- deem às autoridades locais um forte incentivo para resistir à reforma.

O planejamento familiar também gera numerosos cargos públicos executivos. E, talvez o mais importante, as autoridades temem um súbito surto de nascimentos caso as regras sejam relaxadas.

Mas o governo chinês ainda afirma que o controle de natalidade foi vital para o desenvolvimento do país e que ajudou a reduzir o desgaste ambiental ao impedir 400 milhões de nascimentos adicionais em um país que já tem 1,3 bilhão de habitantes.

Acesse o PDF: Política do filho único gera tensão na China (Folha de S.Paulo, 03/11/2013)

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