(Folha de S.Paulo) Este poderia ser só mais um filme ansiosamente esperado pela comunidade lésbica e, embora seja, vai além. “Flores Raras” nos conta a história de duas mulheres vivendo os encontros e desencontros do amor e da vida, os traumas familiares e suas consequências e a maneira como, cada uma a seu modo, sobrevivem a tudo isso.
Estamos diante de um belo filme. A concretude e objetividade de uma, que explode um morro para proporcionar uma vista maravilhosa à amada, e a subjetividade de outra, que se liberta diante do estrangeiro que a acolhe.
A fortaleza e a assertividade se fundem com a insegurança e a sensação de não ter lugar no mundo: uma se fundindo com outra, vivendo a troca que torna surpreendente o final dessa história de amor intenso e denso.
A trama aguça a curiosidade pela poesia de Bishop e o papel de Lota na arquitetura carioca. Mas tem mais. Uma mulher muda a vida de outra. Empresto a frase de Norma, promotora legal popular, no documentário “Imagem Mulher”, que dialoga com o papel da mídia na legitimação da violência contra a mulher (a ser exibido em setembro).
A militância lésbica está colocada diante dos desafios de romper com os padrões heteronormativos das relações entre mulheres e de participar na construção de um mundo onde mulheres não sejam menos que homens.
No filme, as duas transitam sem problema por salões, festas e reuniões, tratadas com respeito e admiração. Em tempos de debates sobre laicidade do Estado, concepções de cidadania e novos arranjos familiares, “Flores…” nos mostra o quanto o poder aquisitivo ainda é passaporte para acesso a direitos.
Tempos em que a intolerância religiosa interfere de maneira brutal na vida das pessoas, quando direitos podem se tornar moeda de troca em espaços que deveriam garantir acessibilidade e equidade nas políticas públicas e no Judiciário.
Uma mulher muda a vida de outra mulher. Mas, onde estão as mulheres? Onde estão as lésbicas? Há mais de 30 anos a participação política dessas mulheres tem contribuído para os avanços.
Tem mais. Precisamos superar a violência física e/ou psicológica que pode ser impingida pelo simples fato de a pessoa ser mulher, por usar roupa “inadequada” ou pelo “despudor” de se relacionar com alguém do mesmo sexo.
Glória Pires e Miranda Otto são dignas de homenagens. Assim como Bias e Roses, Célias e Camilas, Érides e Anas Cleides e Telmas, Silvias e Cris. E tantas outras anônimas que em seu dia a dia, se comprometem e transformam a vida de tantas outras mulheres. Todas podem ser flores, mas nada banais.
RITA QUADROS, feminista, integra a coordenação do Cinemulher e coordena a área de controle social da Secretaria de Política para Mulheres de São Paulo.
Acesse o PDF: Esperado pela comunidade lésbica, filme vai além disso (Folha de S. Paulo, 16/08/2013)