(Marie Claire) Aos 32 anos e eleita duas vezes como a deputada federal mais votada do Rio Grande do Sul, a gaúcha fala, em entrevista exclusiva, sobre direitos das mulheres, bancada evangélica, machismo e debate, ainda, as causas da baixa participação feminina no Congresso Nacional.
Manuela D’Ávila sonhava em ser professora universitária. Cursou jornalismo e ciências sociais. No entanto, a política sempre esteve por perto. E, depois de passar por diversos movimentos políticos estudantis, ela decidiu se dedicar totalmente ao assunto. Em 2004, saiu da faculdade direto para a Câmara dos Vereadores de Porto Alegre, eleita pelo PCdoB.
Com quase dez anos de política, a gaúcha de 32 anos já concorreu duas vezes à prefeitura de Porto Alegre. Em 2006, entrou no Congresso como a deputada federal mais votada do Rio Grande do Sul, bateu o próprio recorde em 2010 e presidiu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Atualmente, é líder do seu partido e foi indicada pela 5ª vez ao Prêmio Congresso em Foco, como uma das melhores deputadas do Brasil. Apesar disso, não acredita em padrões. “Não existe isso de ‘ser político'”, afirma.
Marie Claire: A política é um terreno masculino e preconceituoso?
Manuela D’Ávila: Com certeza. Nos números, na forma e no conteúdo ainda é um mundo dominado pelos homens. Quanto ao preconceito, acho que todas as mulheres em suas profissões sofrem isso. Comigo não foi diferente.
MC: Em algum momento ser bonita a ajudou em algo na política?
Manuela: Não, ao contrário. Muitas vezes as pessoas tiveram ainda mais preconceito com as minhas ideias e colocaram minha capacidade em questão. Não dramatizo porque isso acontece com grande parte das mulheres, né? Elas sempre são adjetivadas. Se elas estão solteiras é porque ninguém aguenta, se estão casadas é porque têm que ter um marido. Se vamos comer no McDonalds, temos que escutar: “depois não sabe porque está gorda”. Se comemos salada, soltam um “coitada, não come nada de mais gostoso”. A cultura machista tenta fazer com que sempre tenhamos que provar algo. Esse é um dos pontos que a minha militância combate.
MC: Por ser mulher, há terrenos onde não pode atuar?
Manuela: Acho que existem espaços mais difíceis de entrarmos no Congresso Nacional. Proibido, não. Inclusive temos, sim, que estar cada vez mais em todos os temas já que resistem muito à entrada de mulheres. O machismo lá dentro ainda é muito grande e nossa participação, pequena. Somos só 8%, ou seja, apenas 40 de 500.
MC: A mulher teria como diminuir a insatisfação do povo brasileiro com a política nacional?
Manuela: O centro da insatisfação, mesmo que não identificado pelas pessoas, está na forma como tudo é financiado. Mudamos vários detalhes na última década, mas isso ainda não. Quer dizer: como uma mulher vai entrar na carreira política se tudo for financiado por 300 grandes empresários homens? Eles, claro, vão querer continuar pagando por homens. Os homens até votam nas mulheres, mas a questão não é esta.
MC: É uma questão de reforma política?
Manuela: Sim, sem dúvida. Defendo muito que pare de existir esse financiamento por parte de empresas privadas. O financiamento tem que ser público e feito por pessoas físicas. Se você entra para ajudar na campanha do seu candidato com 100 reais, teremos algo mais barato, sem todo esse show pirotécnico. Isso dá um contato maior. Assim, as mulheres podem se aproximar mais disso. Não adianta estarmos dispostas a nos candidatarmos se as grandes campanhas forem pagas por executivos homens que querem filhos e netos de quem já está lá naquele determinado cargo.
MC: Quem é a Manuela D´Ávila após a experiência política de dez anos?
Manuela: Conheço muito mais do nosso país e entendo muito mais da luta e complexidade das mulheres. Isso me faz vivenciar mais de perto o drama das mulheres. Meus mandatos fizeram de mim uma defensora mais radical do que antes.
MC: Sua atuação política fez com que planos de casamento ou maternidade ficassem em segundo plano? Ou, ao contrário, se sente cada vez mais cobrada de ter uma família tradicional estabelecida pela política?
Manuela: Não me sinto cobrada por nada. Vivo sossegada quanto a minha vida pessoal. Já posterguei bastante meus planos. Hoje me sinto absolutamente autorizada a conciliar e, em determinados momentos, priorizar a vida pessoal. Não que vá negar meu trabalho, mas priorizar uma reflexão sobre minha vida privada e concilia-lá com a pública.
MC: O país precisa lutar muito mais pelos direitos das mulheres?
Manuela: Sim e admito: antes eu não tinha noção de nada disso. É bom falar sobre este tema porque as mulheres da minha faixa etária e da minha origem social acham que as bandeiras feministas estão ultrapassadas. Elas acham que a violência contra a mulher, seja a sexual ou a de menores, ou o tráfico humano, são todos assuntos superáveis. E não são. É uma realidade do Brasil. A baixíssima participação de mulheres na política é um traço da sociedade que oprime, que silencia as mulheres na base da porrada, como diz a expressão popular. E o mais grave é a responsabilização da vítima. Seja em estupro, violência, ou até na política, quando falamos mais alto, eles querem nos responsabilizar. Essa é a cultura do Brasil: se usamos roupa curta, somos responsáveis pela violência, se somos duronas, nos culpam por algo.
MC: Defender temas ligados à juventude e ao engajamento nas redes sociais fizeram com que você ficasse mais popular…
Manuela: É uma questão de identidade com os jovens. Se eles se identificam comigo, têm total liberdade para cobrar, bater boca e voltar a gostar. A gente tem uma relação de igual para igual. Sem formalismos ou burocracia.
MC: Você já afirmou que o aborto é uma questão de saúde pública. Por que acha isso?
Manuela: Sempre que entram neste assunto, na sequência vem a questão da religiosidade. Enquanto isso, as mulheres morrem fazendo aborto. Não é apenas o debate “eu faria ou não”. Eu não faria, mas não é esse o ponto. Mulheres são submetidas a procedimentos ilegais, ficam estéreis. Concordo quando os religiosos dizem que é um debate sobre a vida. Também quero debater a vida, mas a daquelas que morrem nestes procedimentos, principalmente as pobres. As ricas se submetem a cirurgias caríssimas em clinicas luxuosas e, dessa forma, não saem de lá com o próprio atestado de óbito.
MC: No início de agosto a bancada evangélica reagiu à lei da pílula do dia seguinte para vítima de estupro. O que acha desse caso?
Manuela: São razões típicas de uma bancada religiosa. Mas é algo totalmente ultrapassado, como quando são contra camisinha, exames de pré-natal ou uso de células-tronco para o combate às doenças degenerativas. É uma bancada totalmente conservadora que tem posições das quais eu discordo completamente.
MC: Como o projeto da “cura gay”?
Manuela: Sim, exatamente. Isso é algo do século 18, né? Curar as pessoas do que não é doença. Aliás, as mulheres já foram vítimas disso. Antigamente as colocavam na fogueira. Agora estão querendo fazer o mesmo com os homossexuais. É por isso que nós, mulheres, nos identificamos tanto com a causa.
MC: Jean Wyllys luta por condições dignas de trabalho para as prostitutas, como a legalização das casas de prostituição e o direito à aposentadoria delas. Qual seu posicionamento a respeito?
Manuela: Concordo com a maior parte das posições defendidas por ele. Neste caso, ao contrário do que outras pessoas argumentam, acho que regulamentar, organizar, não aumenta o número nem estimula a prostituição.
MC: Quando você presidiu a Comissão de Direitos Humanos, chegou a pedir o afastamento de Jair Bolsonaro da Comissão afirmando que ele é “uma pessoa que não defende os direitos humanos”. Marcos Feliciano está no cargo de presidente da mesma Comissão. É mais complicado defender causas de direitos humanos com uma pessoa como a postura dele no cargo?
Manuela: O mais complicado é ele presidir a Comissão. A nossa luta avança, mas pessoas como ele nos fazem perceber que ainda há contradições no Brasil. O Feliciano nos tira da posição cômoda de achar que tudo está resolvido. Quando presidi a Comissão, cheguei a pedir, além do afastamento do Bolsonaro, também o do Feliciano. Mas isso sequer se tornou público. Ele é um parlamentar eleito. Então, olhando o outro lado da moeda, a sociedade precisa fiscalizar muito e pressionar para que pessoas como ele não se elejam. Gosto muito de uma frase judaica que diz: “lembrar, conhecer, para que não aconteça mais”. Se aplica a isso: essa Comissão nunca foi tratada como protagonista na Câmara. Agora será, sim, tratada com tamanha importância para que o erro não se repita.
Acesse o PDF: “Se aborto é um debate pela vida, quero debater a das mulheres que morrem”, diz Manuela D’Ávila (Marie Claire, 19/08/2013)