(Natália Martino e Rodrigo Cardoso, da IstoÉ) Como pensam as jovens ativistas que usam o corpo como forma de expressão, protestam com ousadia e irreverência, têm como bandeira a liberdade e a diversidade e defendem as minorias
1911
A luta pelo direito ao voto marca a primeira onda feminista do mundo
2012
Ativistas nuas em frente à Torre Eiffel, em Paris, pelo fim da violência sexual
Faz meio século que a brasileira deixou de padecer de uma das amarras que pontuaram a sua trajetória. Foi somente em 1962 que o Código Penal a eximiu do consentimento do chefe da casa, no caso o homem, para trabalhar fora ou viajar. Fruto do ativismo feminino, essa conquista soa absurda aos ouvidos das jovens que já nasceram sob a égide da emancipação. Com o passar do tempo, o feminismo, apontado como o mais bem-sucedido movimento social do século passado, pintou um horizonte de possibilidades às mulheres, que hoje podem ser o que quiserem e andar por onde quiserem. Mas o movimento de outrora, cuja queima dos sutiãs se tornou o episódio símbolo (leia quadro à pág. 63), segue se reinventando na pele de jovens ativistas, que agora usam o corpo para se expressar – leia-se os seios à mostra. Essas mulheres têm como bandeira a liberdade e a diversidade e se arvoram para defender o direito das minorias, tudo com um toque de ousadia e irreverência, próprios de sua faixa etária. E o topless nunca esteve tão no front das manifestações quanto agora. Exemplo disso ocorreu no início da semana passada, durante a conferência Rio+20, no Rio de Janeiro. Em uma passeata com o slogan “Mulheres contra a mercantilização de nossos corpos, nossas vidas e a natureza!”, militantes do grupo feminista Tambores de Safo, de Fortaleza, foram às ruas sem roupa da cintura para cima em um ato que contou com cinco mil participantes.
Outro exemplo desse novo feminismo, no mês passado, a Marcha das Vadias tomou ruas e avenidas de cerca de 200 cidades no mundo em países como Índia, África do Sul, Austrália, Alemanha e Brasil, tendo como tônica ativistas com seios de fora. O movimento foi criado em 2011, na cidade de Toronto, no Canadá, depois que um policial aconselhou mulheres, durante uma palestra de segurança pública, a não vestir certas roupas para não serem estupradas. “Não são apenas as boas meninas virgens que devem ser respeitadas. Essa é a novidade”, afirmou à ISTOÉ a canadense Heather Jarvis, uma das idealizadoras da marcha. “As mulheres podem ser quem elas quiserem e não devem ser julgadas e muito menos violentadas por causa de suas escolhas.”
Traço marcante do ideário neofeminista, a agenda que pauta essas ativistas é muito mais ampla do que as manifestações contra abusos em relação ao gênero. Elas têm se posicionado sobre modelos de desenvolvimento e questionam o capitalismo e as violações de direitos de comunidades indígenas femininas, entre outras questões. “Lutar pelos direitos em geral e não só ao que se refere às mulheres tem revitalizado o movimento feminista”, afirma a doutora em filosofia Carla Regina, da Universidade Federal Fluminense (UFF). A forma de protestar tem conferido irreverência ao movimento e tirado o ranço que o conservadorismo deu ao termo feminista. É o que pensa Margareth Rago, professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Para ela, a caricatura feminista dos anos 70 e 80 era a de uma mulher séria, asséptica e nada erotizada. “As jovens que participam das Marchas das Vadias, por exemplo, entram com outras cores, brincam com seus corpos e questionam todas as convicções”, diz a pesquisadora na área de gênero e feminismo.
No Brasil, uma estudante de cinema de 19 anos tem se apresentado como representante da chamada nova ordem do movimento feminista. Natural de São Carlos, interior de São Paulo, Sara Winter é a primeira brasileira a fazer parte da Femen, grupo feminista ucraniano criado em 2008 que possui cerca de 400 membros espalhados pelo mundo. Essas moças, altas e loiras em sua maioria, protestam de topless por diferentes motivos. Estiveram em Belarus de peito aberto contra o preço do gás natural; em Milão (ITA) contra a ditadura da magreza e em Paris (FRA) gritando contra o ex-diretor do FMI Dominique Strauss-Kahn. Grupos feministas como o Femen revelam outra marca desse movimento: essas moças não estão sozinhas. Fazem coro com elas homossexuais, transexuais, travestis – e, inclusive, os homens. Isso ocorre porque a juventude feminina, hoje inserida no mercado de trabalho e galgando cada vez mais postos de chefia, luta pela liberdade e não contra sexo oposto. “O movimento feminista foi muito criticado em certo momento pelo fato de a mulher protestar se vitimizando. E, hoje, ninguém está apelando ao discurso de vítima ao ir à rua com o peito de fora”, afirma Carla Regina, da UFF. Na quarta-feira 20, Sara embarcou para a Ucrânia onde passará três semanas fazendo um curso com as fundadoras da Femen. Ao retornar, a estudante inicia o ativismo da Femen Brasil no País. “Os seios de fora chamam a atenção para o nosso protesto. Mas, com o tempo, as pessoas passarão a prestar atenção também no que defendemos”, diz Sara, que subiu em um dos palcos da Virada Cultural paulista para, de topless, bradar “meu corpo me pertence”, frase clássica do movimento feminista.
Mas o que dizem as precursoras do feminismo? Elas aprovam o uso do corpo como bandeira? “Eu me considero uma feminista jurássica, mas o movimento vem se renovando com outras energias. Quero aplaudi-las e não criticá-las”, afirma Schuma Schumaher, 60 anos, da ONG feminista Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh) e uma das maiores pesquisadoras sobre a história da mulher brasileira. Com ou sem roupa cobrindo os seios, o fato é que o novo feminismo concretizou um sonho de cinco décadas atrás, quando a americana Betty Friedan (1921-2006) e a sua obra “A Mística Feminina” pautavam as discussões: ele se espraiou, foi além do ambiente acadêmico, e está em todos os cantos da sociedade. Hoje é possível encontrar articulações nas comunidades ribeirinhas e entre redes de trabalhadoras domésticas, só para citar dois exemplos. No começo do novo milênio, estimava-se em cerca de mil os grupos feministas espalhados pelo País. Atualmente esse número triplicou, de acordo com Schuma.
A professora de estudos culturais da Universidade de São Paulo Maria Elisa Cevasco não é tão entusiasta quanto Schuma e tem dúvidas sobre a eficiência dos métodos utilizados pelas jovens feministas. “Estão usando o corpo, o vocabulário patriarcal calcado no fato de que a mulher está na vitrine, como uma estratégia. Será que assim se distanciam do discurso machista ou reforçam essa lógica da exploração sexual?”, questiona Maria Elisa. “Eu gostava mais quando as feministas queimavam o sutiã.” Já a escritora americana Camille Paglia, que se tornou dissidente e crítica do movimento feminista sob o argumento de que ele foi o responsável por fazer a mulher assumir o papel de vítima, não foge de outra polêmica ao criticar a Marcha das Vadias. “Não se chame de vadia a não ser que você esteja preparada para viver e se defender como tal”, escreveu a professora da Universidade das Artes, na Filadélfia. “Muitas garotas de classe média superprotegidas têm uma perigosa visão inocente do mundo.”
Articuladas e protestando de forma organizada, as novas feministas não deixaram de lado as antigas demandas. Violência doméstica e abuso sexual, assim como liberdade sexual e reprodutiva, seguem como reivindicações primordiais. “Vejo essas manifestações de hoje, acho divertido, até estive na Marcha das Vadias, mas na essência é a mesma coisa de sempre. Nós falávamos dessas questões há 40 anos”, afirma Yolanda Prado, 81 anos, uma das mais antigas feministas brasileiras. Para Sônia Corrêa, cocoordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, as reivindicações são as mesmas porque os problemas permanecem. Ela acredita que as últimas décadas foram marcadas por ganhos culturais, mas que ainda falta avançar muito em políticas públicas. “Nos hospitais acontecem 67% da mortalidade materna no Brasil. Isso seria perfeitamente evitável se pudéssemos contar com bons serviços no pré-natal e no parto”, diz. “Além disso, muitos dos avanços não vieram do Legislativo e do Executivo, como deveriam. O direito ao aborto de anencéfalos foi uma decisão do Judiciário, não é assim que tem que ser.”
A questão do direito ao aborto, outra reclamação de outrora, é um dos pontos nos quais o movimento feminista mais encontra resistência. O documento aprovado na semana passada pelos chefes de Estado na Rio+20 não continha o termo “direitos reprodutivos”, cunhado na IV Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (ICPD), realizada no Cairo em 1994. “Há quase duas décadas, esses direitos têm sido reafirmados nos documentos das Nações Unidas e, agora, foi retirado dessa Carta graças às pressões do Vaticano. O texto é frustrante”, avalia Sônia Corrêa, que foi uma das dezenas de ativistas presentes no Território Global das Mulheres da Cúpula dos Povos durante o evento no Rio de Janeiro. A ofensiva conservadora para evitar a permissão do aborto extrapola as fronteiras brasileiras. “Essa reação fundamentalista às conquistas da mulher tem ganhado força em toda a América Latina. Na América Central, vários países revogaram o direito ao aborto”, diz Silvia Pimentel, presidente do Comitê para Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) da Organização das Nações Unidas (ONU). As chefes de Estado presentes à Cúpula das Mulheres também manifestaram contrariedade com relação à retirada da questão sobre o direito à reprodução. No documento final, formatado com a presença da presidenta Dilma Rousseff e a diretora-executiva da ONU Mulheres, Michelle Bachelet, conclamaram os Estados por plena igualdade de gênero, participação equitativa das mulheres em todos os níveis de liderança, o fim das barreiras discriminatórias, o direito à saúde reprodutiva e o fim da violência, entre outras providências. “Não podemos deixar metade da humanidade discriminada nesse processo de desenvolvimento. A participação das mulheres é fundamental”, afirmou Michelle.
Segundo a escritora Rosiska Oliveira, ex-presidente do Conselho Nacional de Direitos das Mulheres, a reivindicação que mais caracteriza o momento atual do feminismo é a luta pelo tempo. “Precisamos reorganizar o mercado, flexibilizar horários e locais de trabalho tanto para homens quanto para mulheres”, afirma. Debates como esse têm o poder de mudar não apenas a vida das mulheres, mas toda a organização da sociedade. A luta das novas feministas brasileiras costuma ter essa característica: uma pauta em prol de ambos os sexos. “Mostramos aos homens que eles também poderiam ser outros, diferentes do que foram educados para ser”, diz Margareth, da Unicamp. A estudante Sara, porém, gostaria que algumas feministas que a criticam respeitassem sua maneira de protestar. “Reclamam da exposição dos seios; dizem que eu vou manchar o feminismo”, afirma. Schuma, da Redeh, lembra que o corpo da mulher historicamente foi utilizado para justificar muitas barbáries e, portanto, o desejo desse corpo livre é um despertar da juventude do século XXI. “Estamos assistindo a uma renovação”, diz a feminista, certa de que as bandeiras pelas quais luta há décadas estão representadas nesse novo feminismo.
Acesse essa reportagem no site: O novo feminismo (IstoÉ – 22/06/2012)