(O Globo) Muita gente no Brasil consegue ver com nitidez o grau de desigualdade racial americana, mas não a brasileira. Fica indignada quando vê os números ou sabe das histórias nos Estados Unidos. É capaz de se emocionar com o discurso de Martin Luther King, e não vê o que está posto diante de nossos olhos. A nossa vergonhosa separação racial exige muita abstração para não ser vista.
De novo isso ficou evidente, na comemoração dos 50 anos do maravilhoso e inesquecível discurso do pastor Martin Luther King. O racismo deles, de ontem e de hoje, nos deixa indignado; mas o nosso sequer é notado. A ausência dos negros nos eventos onde está a elite, de qualquer área, não incomoda os brasileiros. E porque tantos não veem essa ausência, podem continuar dizendo com conforto que o racismo brasileiro não existe. São os que dizem que nós apenas discriminamos os pobres. E falam isso sem pejo, sem sequer se dar conta do preconceito que a frase embute.
A propósito do aniversário do mais importante discurso do século XX, muitos textos foram publicados na imprensa brasileira. Houve textos mostrando o quanto, cinco décadas depois, o sonho de Martin Luther King está ainda incompleto. Houve até quem tentasse extrair das palavras do líder negro americano uma condenação às políticas de inclusão baseadas em ações afirmativas. Não é a primeira vez, nem será a última, que no Brasil vai se tentar inverter as palavras do ícone do movimento negro. O manifesto dos intelectuais, de triste memória, que se divulgou no Brasil contra as cotas raciais usava as palavras de Martin Luther King para sustentar suas teses de defesa do status quo no Brasil. Felizmente, tudo isso foi superado quando o Supremo Tribunal Federal considerou as cotas constitucionais por unanimidade. Mas seus opositores ainda resmungam.
Pode-se revisitar qualquer número e lá está a marca da separação entre pretos e pardos, de um lado; brancos de outro. Pode-se visitar os espaços brasileiros para se encontrar de um lado a hegemonia branca, de outro a maioria preta e parda.
Uma jovem negra de hoje, certamente, estudou mais do que seus pais, mas a taxa de desemprego feminino negro entre 18 a 24 anos chega a 20%. A dos jovens em geral é de 13%. A da população é menos de 6%. Mesmo num dos melhores momentos do mercado de trabalho recente no Brasil, a exclusão permanece.
Os salários dos trabalhadores negros é a metade dos salários dos trabalhadores brancos. Muitos dirão que é a diferença de escolaridade. Mas os estudos que comparam pessoas com a mesma escolaridade comprovam que a diferença persiste. Há inúmeros dados, mas não quero empilhar números aqui, eles são conhecidos. O que me espanta é o silêncio enorme que se faz sobre eles. O tema não tem tido a visibilidade e a constância que precisa ter na imprensa brasileira.
Recentemente, numa entrevista que me concedeu, o ministro Joaquim Barbosa, presidente do STF, se referiu ao episódio do concurso do Itamaraty do qual ele foi eliminado numa entrevista. Depois de ter passado nas provas, ele foi reprovado por um embaixador que o entrevistou. E isso foi referendado por outros cinco embaixadores.
É transparente a ausência de negros no Itamaraty desde sempre. Quando se quer dizer que não é bem assim, se lembram do embaixador Souza Dantas. Ele era o único quando foi nomeado no final dos anos 1960. Diante de uma representação diplomática quase escandinava, o Itamaraty começou a tomar, recentemente, algumas medidas de apoio à entrada de candidatos negros. Mas é pouco e recente. Sobre o caso lembrado pelo ministro Joaquim, a única resposta sincera do Itamaraty era reconhecer esse passado de discriminação. Mas o Ministério preferiu uma nota de defesa corporativa em que usou o presente recentíssimo para abonar um longo passado de exclusão. A verdade é que a porta que sempre esteve fechada, apenas começa a se entreabrir.
Seria bom se o Brasil tivesse aproveitado a oportunidade do aniversário do memorável discurso para pensar sobre si mesmo, fazendo uma honesta admissão de quanto tem discriminado os negros. Se a pátria permanecer assim distraída, sendo tão capaz de ver o alheio, mas nunca a si mesma; se continuar repetindo os mitos da miscigenação que tudo resolveu, se permanecer não percebendo o tom racista em certas palavras e reações, vamos estar aqui partidos ainda, no dia em que se comemorar 100 anos da proclamação do sonho americano.
Acesse o PDF: Pátria distraída (O Globo, 01/09/2013)